Ela acreditava ter encontrado no casamento a chance de reconstruir sua vida após perder toda a família em um acidente trágico. Mas o que a protagonista não sabia é que o próprio marido que jurava protegê-la havia se unido à verdadeira culpada pela sua dor. Durante três anos, ele sustentou em segredo a mulher que sempre amou — a mesma que havia tirado tudo dela. Para manter essa farsa, enganou sua esposa, a fez acreditar em mentiras cruéis e até provocou um acidente que quase a matou, apenas para justificar a transferência de um rim que nunca foi necessário. Mas o destino não perdoa. Uma conversa ouvida por acaso revela toda a verdade e desperta dentro da protagonista uma força que ninguém imaginava. Agora, não é mais a jovem frágil e enganada. Ela se torna a mulher que vai cobrar cada lágrima, cada mentira e cada gota de sangue arrancada dela. Entre a dor e a vingança, ela decidirá quem merece pagar com a vida — e quem será condenado a viver para sempre sob o peso de suas escolhas.
Ler maisA noite estava estranhamente silenciosa naquela casa. Silenciosa demais para alguém que, como eu, carregava dentro do peito uma confusão que parecia gritar. Meu nome é Clara Monteiro; sou esposa de Adriano Monteiro e, durante três anos, dividi com ele esta casa, esta rotina e a promessa de um futuro que agora soava vazio. Passei o dia inteiro tentando ignorar aquela sensação de vazio, de algo que não se encaixava no meu casamento, como se houvesse uma sombra entre mim e o homem com quem eu dividira tantos dias e pelo visto eu fui enganada durante esse tempo.
Estava na cozinha, preparando um chá para espantar a insônia — fazia isso sempre que a noite me encontrava inquieta — quando ouvi o som abafado de vozes vindas do escritório. O chá, quente na xícara, era um gesto pequeno para conter a ansiedade; e ainda assim, ali, exatamente ali, senti que precisava saber o porquê daquele silêncio que me corroía. Meu marido raramente se trancava lá tão tarde, ainda mais em companhia de alguém. A curiosidade me puxou pelos pés antes que eu pudesse resistir. Encostei devagar no corredor escuro, prendendo a respiração, até que as palavras começaram a se formar nítidas, cada sílaba cravando como lâmina na pele. — Você não pode viver assim para sempre — disse a voz de seu amigo. Havia um tom firme, quase impaciente. — Clara não merece isso. Um silêncio pesado se seguiu, e então reconheci a voz do homem que me amava — ou que achava amar. — Você acha que eu não sei? — ele respondeu, a voz baixa, carregada de algo que nunca tivera a coragem de me mostrar. — Mas se eu contar, eu perco tudo. Eu perco Clara, fico sem nada. Meus dedos tremeram, apertando a parede. Ele falava de mim? Perder a mim? Ou estava falando dela… da mulher que sempre fora um fantasma entre nós, sem que eu entendesse o motivo da ausência de calor em certos beijos, da pressa em alguns abraços? Eu estava ali porque algo me avisava que a vida que eu conhecia era frágil — e porque, sem saber exatamente por quê, precisava entender o que se escondia por trás das portas fechadas. — Você não entende, — ele continuou, e seu tom agora era um sussurro cheio de desespero. — Ela matou os pais da Clara. Você tem ideia do que aconteceria se soubessem? Se ela fosse presa? Meu coração parou. A respiração se prendeu na garganta como se eu tivesse engolido vidro. O sangue gelou, e em um segundo minha mente viajou de volta quatro anos, até o acidente, à dor e ao vazio que dele sobrevivera. Ele não podia estar dizendo aquilo. Não podia. — Eu entendo muito bem — retrucou o amigo, firme. — Mas esconder isso, sustentar aquela mulher em outro país, mentir para sua esposa durante três anos… você acha mesmo que pode continuar desse jeito? Você acha que não vai acabar se destruindo junto? Sustentar. Outro país. Três anos. As palavras eram martelos batendo um depois do outro, quebrando o chão embaixo dos meus pés. Eu quase cambaleei. Meu marido soltou um riso amargo. — Já me destruí. Eu fiz coisas… coisas que ela nunca pode descobrir. Você acha que eu não sei? Meu corpo inteiro queimava, mas era um fogo gelado, corrosivo. A mão que segurava a xícara tremeu tanto que o líquido quente escorreu pelos dedos, mas eu não senti nada. Só conseguia ouvir. — Você quase matou sua esposa naquele acidente só para poder justificar a cirurgia. — A voz do amigo saiu carregada de nojo. — Você roubou um pedaço dela. O que você fez não tem volta. Minha visão embaçou. Um nó de lágrimas me cegava, mas me recusei a piscar. Eu precisava ouvir tudo, precisava entender o que me havia sido negado por anos. — Eu só queria salvar a mulher que eu amo — meu marido murmurou, e naquele instante eu entendi com clareza devastadora: eu nunca fora a escolhida. Nunca fora a que ele amava por inteiro. Eu era a ponte, o sacrifício conveniente, a mulher cuja dor justificara outra mentira. O silêncio seguinte foi tão profundo que pude ouvir o som do meu próprio coração despedaçando. — E ela… precisava mesmo do rim? — o amigo insistiu, como se ainda houvesse espaço para dúvida. Um riso nervoso, quebrado. — Não. Não precisava. Foi uma mentira. Uma manipulação dela… e eu caí. Mas o que eu poderia fazer? Eu não podia deixar que a verdade viesse à tona. Minha mão deslizou da parede, e eu quase caí de joelhos no corredor. O mundo inteiro girava em torno de uma revelação que eu jamais imaginara. Ele não apenas me traíra. Ele não apenas me enganara. Usara meu corpo como moeda de troca para alimentar uma mentira conveniente. O amigo suspirou, cansado. — Então conte. Por Deus, conte logo antes que ela descubra sozinha. Tarde demais, pensei. Muito tarde. Afastei-me em silêncio, cada passo ecoando como um trovão dentro de mim, embora meus pés mal tocassem o chão. O corredor parecia interminável, como se eu estivesse atravessando um deserto de dor. Quando alcancei o quarto, fechei a porta devagar, com a calma de quem já não sente nada — mas dentro de mim, algo havia mudado para sempre. Deitei-me na cama, mas não preguei os olhos. O teto parecia me observar, cúmplice do segredo que agora eu carregava. Meu peito subia e descia rápido demais, o coração batia no ritmo da fúria que começava a nascer. Eu não era mais a esposa submissa que acreditava em cada palavra. Eu não era mais a mulher que esperava migalhas de amor. Eu tinha sido traída, mutilada, enganada. E se ele achava que eu não descobriria… estava redondamente enganado. Naquele instante, entre a dor e o ódio, uma promessa silenciosa tomou forma. Eles me arrancaram tudo, mas agora era minha vez de cobrar cada dívida. Quando a hora chegasse, não haveria piedade.O auditório da Casa Raízes estava arrumado com cadeiras em círculo, cartazes coloridos pregados nas paredes e uma mesa com sucos e bolos caseiros. Era o primeiro encontro oficial do programa voltado para adolescentes — um espaço para diálogos, prevenção e descobertas. Júlia, nervosa e animada ao mesmo tempo, caminhava de um lado para o outro, ajeitando detalhes que ninguém mais parecia notar.Clara observava de longe, sentada numa das cadeiras. Sentia orgulho e uma pontada de ansiedade. Lembrava-se de como era difícil lidar com juventudes que ainda não sabiam nomear suas dores, mas já carregavam o peso delas.As meninas começaram a chegar. Algumas vieram com as mães, outras trazidas por vizinhas. Eram cerca de dez, todas entre 13 e 17 anos. Algumas riam alto, outras se encolhiam, desconfiadas. Júlia deu início à roda com um sorriso acolhedor.— Antes de qualquer coisa, quero que vocês saibam que aqui ninguém precisa fingir. Vocês podem falar ou ficar em silêncio, como se sentirem segu
O outono já se transformava em inverno, e a Casa Raízes se tornara ponto de encontro não apenas para mulheres em busca de acolhimento, mas também para a comunidade. Havia palestras, oficinas de arte, saraus de poesia. As janelas iluminadas à noite mostravam que ali não havia escuridão que sobrevivesse por muito tempo.Júlia, depois de seu depoimento no tribunal, mudara de maneira visível. Ainda carregava marcas, mas já não andava com os ombros caídos. Agora olhava para frente, envolvia-se em atividades e, mais do que isso, se oferecia para escutar outras. Clara observava à distância, com orgulho.Uma tarde, encontrou-a na biblioteca da Casa, rodeada por três jovens recém-chegadas. Júlia falava, gesticulando, e todas a escutavam com atenção. Ao perceber Clara na porta, sorriu e continuou.— Vocês não precisam ter pressa — dizia. — Cada uma tem o próprio ritmo. Eu achei que nunca conseguiria falar em voz alta, mas um dia percebi que já estava falando. E é isso que importa: seguir, mesmo
O outono chegava devagar, tingindo as ruas da cidade costeira de tons alaranjados e dourados. Clara gostava de caminhar pela praça central, observando as folhas caírem como páginas viradas de um livro antigo. A cada estação, lembrava-se de que o tempo não pedia permissão para seguir adiante. E talvez fosse essa a lição que Júlia ainda precisava aprender: não esperar estar pronta para recomeçar, mas recomeçar mesmo imperfeita.Na Casa Raízes, o ambiente estava mais movimentado do que nunca. Novas mulheres chegavam, trazendo consigo histórias que se repetiam em padrões assustadoramente familiares: promessas quebradas, manipulações, ameaças veladas. Clara escutava cada uma delas como quem recolhe fragmentos de espelhos, sabendo que toda dor refletida ali também carregava um pedaço da sua.Mas Júlia era diferente. Clara a observava como quem vigia uma chama frágil que insiste em não se apagar. Depois da recaída, a jovem ainda caminhava com passos hesitantes, mas havia algo novo em seus ol
A Casa Raízes, apesar da energia de esperança que pulsava em cada sala, também era feita de silêncios pesados e noites difíceis. O processo de cura nunca era linear. Clara sabia disso. Tinha aprendido com a própria vida que recomeçar não é caminhar em linha reta, mas tropeçar, cair, levantar.Foi numa tarde chuvosa que o grito de uma das voluntárias ecoou pelos corredores. Clara correu até o dormitório das residentes e encontrou Júlia trancada no banheiro. Batia contra a porta com os punhos fechados, o rosto em pânico.— Júlia, abre, sou eu — disse Clara, a voz firme, mas sem dureza.Silêncio. Depois, um soluço.— Eu não consigo, Clara! — a voz da jovem atravessava a madeira. — Achei que estava melhor, mas… ele me ligou. Ele disse que vai me encontrar, que eu nunca vou ser livre.O coração de Clara se apertou. Conhecia aquela sensação de perseguição mesmo à distância, como se a sombra de um agressor fosse capaz de atravessar fronteiras.— Escuta, Júlia. Você não está mais sozinha. Ele
As manhãs na Casa Raízes começavam sempre com vozes misturadas: algumas tímidas, outras já seguras. O cheiro de café e pão fresco enchia os corredores, e a rotina trazia uma ordem que muitas daquelas mulheres jamais haviam conhecido. Para Clara, cada detalhe era mais que cotidiano — era prova de que o impossível podia se tornar realidade.Naquela semana, Júlia se tornara ainda mais próxima. Já não se escondia nos cantos, já não falava apenas em sussurros. Participava das oficinas, escrevia bilhetes que mostravam lampejos de esperança. Mas algo ainda a impedia de acreditar de verdade.Certa noite, depois que as outras mulheres foram dormir, Júlia bateu à porta da sala de Clara.— Posso entrar?Clara ergueu os olhos do caderno e sorriu. — Claro.Júlia entrou devagar, abraçada ao próprio corpo. — Eu queria te perguntar uma coisa…— Pergunte.— Como você conseguiu? — A voz dela tremia. — Como conseguiu sair de um lugar de tanta dor e ainda acreditar que valia a pena continuar? Eu olho par
A Casa Raízes já não era apenas um projeto em construção. Tornara-se realidade pulsante. Mulheres chegavam diariamente, algumas com malas pequenas, outras apenas com o corpo e as cicatrizes invisíveis que carregavam. Clara caminhava pelos corredores restaurados do casarão como se percorresse um templo. Ali, cada sala tinha um propósito: oficinas de escrita, de costura, de arte. Cada canto respirava vida nova.Mas, em meio a tantos rostos, havia um que a perturbava profundamente.Seu nome era Júlia. Tinha pouco mais de vinte anos, os olhos grandes e assombrados, os gestos contidos como quem esperava um golpe a qualquer momento. Chegara à Casa com um corte no braço e uma voz tão baixa que parecia desaparecer entre as paredes. Quando Clara a viu pela primeira vez, sentiu o coração apertar. Era como olhar para um reflexo do passado, uma versão jovem de si mesma, antes da queda, antes da coragem.Naquela tarde, Clara encontrou Júlia sentada sozinha no jardim, os joelhos encolhidos contra o
Último capítulo