Acordei antes do despertador. Não foi sono; foi estratégia. Permaneci imóvel, olhos abertos no escuro, ouvindo a respiração dele ao meu lado — profunda, pesada, uma mentira ritmada. Quando o alarme tocou, eu já estava no banheiro, rosto lavado, cabelo preso, o corpo coberto pela armadura mais básica de todas: uma expressão neutra.
— Dormiu bem? — ele perguntou pelo espelho, ajeitando a gravata como quem organiza a própria consciência.
— O suficiente — respondi, e sorri pequeno. O sorriso de quem não quer conversa, mas não quer briga. O sorriso perfeito de uma mulher “normal”.
Ele me observou com atenção por um segundo a mais, talvez tentando decifrar o que não havia. Desviei o olhar e peguei a nécessaire. Ali dentro, escova de dentes, rímel, um batom discreto… e um pen drive que eu nunca tinha usado. Ontem à noite, depois que a casa se calou, eu reorganizei duas gavetas e uma vida inteira. Não era muito, mas era um começo.
— Vou sair mais cedo hoje — disse, como sempre faz quando tem “reuniões”, e o eufemismo já não me feria. — Tem algo de que você precise?
Sim. Preciso da verdade esfregada no papel. Preciso da sua ruína meticulosamente registrada. Preciso do som da sua voz se condenando de novo, desta vez diante de mim. Em vez disso, limpei a pasta de dentes da pia e respondi:
— Não. Só não esquece o casaco. Vai esfriar à tarde.
Ele assentiu, grato pelo cuidado trivial, e saiu do banheiro. Assim que o ouvi andar pelo corredor, abri a gaveta do armário embutido, a de sempre, onde ele guarda meias… e, como eu suspeitava, a chave do escritório. Ele nunca percebeu que eu sei. O homem que me subestimou uma vida inteira me oferece a maçaneta do próprio segredo todos os dias.
No café, coloquei a mesa como se nada estivesse fora do lugar: duas xícaras, duas torradas, o pote de geleia aberto. Ele mexia o celular com pressa, polegar nervoso.
— Novos contratos? — perguntei, bebendo meu café com leite e olhando por cima da borda da caneca.
— É — ele disse rápido. — Clientes de fora.
De fora. A expressão estourou como fogos silenciosos na minha cabeça: passagens, remessas, hospedagens, transferências. Ele não sabia, mas eu já tinha uma lista de palavras para perseguir e transformar em prova.
Quando ele finalmente saiu, a casa respirou aliviada. Fechei a porta, contei até cinco e corri para o escritório. A chave virou macia, como se aquele cômodo sempre tivesse sido meu. Liguei o computador dele. Senha? Nosso aniversário. Quase ri. O homem que arquitetou a minha queda escolheu a lembrança do casamento como código de acesso. Ironia é um atalho para o inferno.
A caixa de entrada abriu como um mar negro de e-mails. Filtros. Buscas. Coloquei palavras simples: “remessa”, “hospedagem”, “transferência”, “Paris”. Não sei por que escrevi Paris — talvez por intuição, talvez por raiva de cidade cinematográfica de romance barato —, mas apareceu. Um recibo de três anos atrás, nome de hotel, número de quarto, um “até breve” em francês que me fez morder o lábio até sentir o gosto de cobre.
Rolei. “Consulta particular.” “Exames.” “Atestado.” “Triagem.” O hospital onde eu assinei papéis sem ler, tonta de analgésicos e confiança. Adicionei “nefro”— de nefrologia — e, como um truque de mágica suja, surgiram mensagens trocadas com uma doutora que eu não conhecia: horários, agendamentos, “obrigado por manter a discrição”. Eu respirei fundo. A verdade estava espalhada, só precisava de mãos firmes para recolher.
Coloquei o pen drive. Baixei tudo. E para o caso de ele ter se tornado subitamente mais esperto, fiz prints e mandei para um e-mail novo, criado às três da manhã com meu sobrenome de solteira. Criar versões de mim mesma era agora parte do plano: uma eu que cumprimenta, outra eu que arquiva, outra eu que vai cobrar.
Antes de sair do escritório, abri a gaveta do cofre. Ele sempre achou que eu não lembraria de números. Usei a senha do acesso remoto da empresa dele — que eu tinha pego meses atrás nos bilhetes que ele deixa jogados. O cofre deu um pequeno suspiro metálico. Dentro, dois passaportes, um envelope com recibos, uma foto antiga: ele e ela, abraçados, sol batendo no rosto, uma praia que não parecia nossa. Havia também um frasco de perfume feminino. Levei a foto ao nariz. O cheiro estava apagado, mas ainda tinha resquício de baunilha barata. Guardei a fotografia no fundo da minha bolsa. Sou sentimental quando a prova tem olhos.
Passei a manhã como se fosse uma versão minimalista de mim: silenciosa, eficiente, invisível. Respondi mensagens de trabalho, confirmei reuniões, apaguei incêndios pequenos. Ninguém suspeita de uma mulher que cumpre prazos. Às onze e meia, saí. O hospital era perto. Escrevi “prontuário” no bloco de notas do celular e caminhei como quem precisa de um remédio qualquer, nada sério.
No balcão, apresentei meus documentos. A funcionária sorriu sem humor.
— A senhora quer cópia completa do prontuário do acidente?
— Sim. E do processo de “triagem” para transplante. — A palavra saiu sem tremer. Firme, como quem cobra um café que nunca veio.
— Pode levar alguns dias.
— Eu aguardo. — Inclinei o corpo, confidente. — E se eu protocolar com base na Lei de Acesso ao Prontuário e pedir urgência?
Ela me olhou de um jeito que só quem já viu muita coisa olha: uma mistura de pena e burocracia. Preencheu um formulário, pediu que eu assinasse.
— Em até setenta e duas horas a senhora será comunicada.
Setenta e duas horas. Eu tinha vivido três anos no escuro; podia esperar mais três dias com os olhos abertos. Ao sair, sentei no banco do jardim do hospital e respirei. Foi ali, entre passarinhos insistentes e sirenes distantes, que escrevi uma mensagem.
Camila, preciso falar com você. É sobre um ex-paciente seu e uma consulta de nefro. Precisa ficar entre nós.Camila foi minha enfermeira durante a internação. É daquelas pessoas que seguram a vida dos outros como quem segura um fio de ouro: com delicadeza e força. Ela me respondeu em cinco minutos. “Liga.”
Contei pouco, só o necessário. O nome do médico responsável, a data aproximada, a sensação de que algo tinha sido forjado.
— Você está me pedindo algo que eu não deveria fazer — ela disse. — Mas você foi a paciente que mais merecia honestidade. Deixa eu ver o que consigo sem quebrar regras.
— Se eu te mandar números de protocolos, você verifica se existem? — perguntei. — Só ‘sim’ ou ‘não’. Sem detalhes, sem nada que te comprometa.
Ela suspirou. — Sim.
Desliguei com gratidão embrulhada em urgência. Ainda no banco, abri o aplicativo do banco. O acesso é meu; a conta é conjunta. Buscas por transferências internacionais. Apareceram várias, todas antigas, valores pulverizados, destino em agências diferentes. Uma delas, três anos atrás, coincidia com a data do recibo do hotel. Salvei os extratos. O som das peças se encaixando é silencioso, mas viciante.
Voltei para casa com a calma cenográfica de uma esposa que passou a manhã no salão. Cozinhei arroz, grelhei frango, cortei salada. O cheiro de alho no azeite é quase uma oração. Enquanto a panela cozinhava, peguei o celular dele — ele sempre deixa jogado sobre a mesa da sala quando chega — e instalei um aplicativo de gravação que inicia com uma palavra-chave: “sincero”. Fiz o teste no meu. Funcionou. O telefonema com o amigo, se repetido, seria meu.
Nós almoçamos frente a frente, como dois estranhos que dividem o mesmo banco de ônibus. Ele falou sobre a empresa, sobre o trânsito, sobre um cliente que “não entende o valor do serviço”. Eu concordei com sons monossilábicos. Quando ele perguntou sobre meu dia, respondi:
— Hospital. Preciso checar umas coisas do meu acidente para o seguro de vida atualizar os dados.
Ele parou o garfo no ar, milésimos de segundo que entregam um pânico discreto.
— Algum problema?
— Nenhum. Só burocracia. — Bebi água. A frieza do copo me ajudou a não sorrir.
À tarde, telefonei para um advogado. “Indicação de uma amiga”, eu disse, e marquei para a semana seguinte. Ele não sabe, mas eu encontrei a primeira peça do tabuleiro jurídico: interdição preventiva de bens, medida protetiva patrimonial, pedido de auditoria médica. Vingança não é grito; é petição.
Quando o sol caiu, a casa ficou acesa em tons quentes. Ele se trancou no escritório, como sempre, e eu fiquei na sala lendo um livro que não avancei três páginas. Esperei. Às nove, o celular tocou. O nome do amigo na tela. Caminhei até a cozinha, deixei meu celular debaixo da fruteira e sussurrei, como quem conversa com as laranjas:
— Sincero.
A gravação começou no aparelho dele, mudo no bolso da calça. Eu podia não ouvir naquele instante, mas teria o arquivo depois. Às vezes, justiça é uma paciência disciplinada.
— Eu não consigo, — ouvi a voz abafada dele vindo do corredor, porque o homem que me chama de “amor” nunca aprendeu a fechar portas. — Se eu contar, ela me destrói.
Encostei a mão na parede e fechei os olhos. Eu estava calma. Tão calma que até me assustei. Porque a verdade é que a dor tinha mudado de estado físico: gelou e cristalizou dentro de mim. Agora eu era vidro — e vidro corta.
Após a ligação, ele veio até mim com o cansaço encenado de quem quer cumplicidade.
— Hoje foi puxado — disse, inclinando-se para um beijo na testa. Aceitei. A frieza dos seus lábios me deu certeza de que não há fogo que sobreviva muito tempo a um segredo assim.
— Vai melhorar — respondi, indo apagar algumas luzes. — Sempre melhora para quem tem coragem.
Ele me olhou, confuso, como se eu tivesse falado em outro idioma. Talvez eu tenha falado mesmo: a língua nova da mulher que acordou.
Antes de dormir, entrei no banheiro e encarei meu reflexo. Toquei a cicatriz quase invisível na lateral do abdômen. Pensei no corpo que foi moeda, na vida que foi argumento, nas mãos que me empurraram para o abismo para salvar outra. E prometi em voz baixa, para que só eu escutasse:
— Amanhã começo a cobrar.
Voltei para a cama. Ele já estava deitado, costas viradas. Apaguei a luz, deslizei o celular de volta para a mesa, e o dispositivo vibrou com a notificação: “gravação salva”. Sorri no escuro. Como eu disse: vingança não é grito. É um arquivo bem nomeado.
Dormir, eu ainda não dormi. Mas naquela noite descobri uma coisa nova sobre mim: o que eles roubaram se recompõe quando a gente decide, com frieza, que não vai mais implorar por justiça — vai construí-la.
Amanhã eu protocolo o pedido do prontuário, envio os extratos para o e-mail seguro, abro a pasta “Dívidas” no meu desktop secreto. Amanhã eu compro um caderno de capa preta, daqueles que não amassam fácil. Amanhã eu escolho a caneta que não falha. Amanhã eu começo a transformar a minha história no processo mais bem documentado que esse homem já viu.
E quando tudo estiver pronto, quando cada peça estiver no lugar, eu vou sentar na frente dele, abrir a foto da praia, a cópia do recibo do hotel, as transferências, a transcrição da ligação, o parecer do hospital, e perguntar com a serenidade fatal dos carrascos:
— Quer confessar agora ou depois?