A manhã começou como tantas outras, mas eu já não era a mesma.
Preparei o café, coloquei as torradas na mesa, deixei o cheiro de manteiga derretida se espalhar pela cozinha como um convite à rotina. Ele apareceu, impecável no terno azul, o nó da gravata ajustado com a precisão de quem gosta de parecer perfeito. Me beijou na testa, como sempre, e perguntou se eu precisava de algo.
— Só que volte cedo hoje — respondi, com a voz suave, quase doce. O tipo de resposta que conforta um homem que nunca suspeita do veneno servindo junto com o café.
Ele sorriu, satisfeito. E saiu.
Fechei a porta devagar e, assim que ouvi o som do carro se afastando, subi correndo para o quarto. Tirei da bolsa o caderno preto que comprei ontem, como quem compra um talismã. Coloquei-o sobre a escrivaninha, passei os dedos sobre a capa rígida e escrevi na primeira página:
“Dívidas.”
A caneta deslizou como sangue fresco. Respirei fundo e continuei:
1. O acidente.
2. O rim.
3. A amante.
4 .O dinheiro enviado.
5. A mentira.
ada palavra era uma lâmina que eu fincava de volta no peito dele, só que no papel ainda não doía. Mas logo doeria.
Passei a manhã revisando os arquivos salvos no pen drive. Emails, extratos, recibos. Tudo catalogado, numerado, guardado em pastas separadas. A cada clique, a farsa ganhava um contorno mais nítido. Meu marido não era apenas um traidor; era um cúmplice. E eu, a peça mais valiosa do jogo dele.
A campainha tocou. Quase pulei da cadeira, o coração acelerado. Espiei pela janela: a vizinha, dona Eunice, segurando um bolo coberto de papel alumínio. Acolhi o presente, agradeci, conversei cinco minutos sobre a nova floricultura da rua e voltei para dentro. Pequenas distrações não tinham espaço no meu plano.
Abri o celular e reli a mensagem de Camila, a enfermeira.
“Verifiquei os protocolos. Dois inexistem. Posso te ligar à noite para explicar melhor.”
Dois inexistem. Isso já era o suficiente para corroer a estrutura dele. Mas eu não queria só corroer — queria demolir.
À tarde, peguei o carro e fui até o escritório de advocacia indicado pela minha colega de trabalho. Um prédio discreto, de fachada bege, corredores silenciosos. O advogado, um homem de meia-idade chamado Augusto, me recebeu com olhos atentos demais.
— Em que posso ajudar? — perguntou, após as formalidades.
Respirei fundo. Não era fácil expor minha vida, mas se vingança tem forma, é essa: desabrochar a verdade em frente a alguém que sabe transformá-la em armas legais.
— Preciso entender o que posso fazer se provar que meu marido me envolveu em um acidente forjado, manipulou exames médicos e usou meu corpo sem necessidade para um transplante.
O silêncio que se seguiu foi denso. Os olhos de Augusto se estreitaram, e ele ajeitou os óculos.
— A senhora tem provas?
Abri a bolsa e tirei o pen drive. Coloquei na mesa, deslizando-o como quem j**a uma carta na mesa de pôquer.
— Ainda são fragmentos, mas vou reunir o resto. Quero saber: quando tudo estiver nas minhas mãos, o que posso exigir?
Ele pigarreou.
— Se o que está dizendo se confirmar… podemos falar de indenização, processo criminal, sequestro de bens, até tentativa de homicídio. Mas vai precisar de documentos sólidos. Nada apenas verbal.
Sorri, sem alegria.
— Eu vou ter.
Saí de lá com uma lista de recomendações: solicitar cópia autenticada do prontuário, registrar um boletim de ocorrência “preventivo”, guardar recibos, organizar cronologia. Tudo que já estava fazendo, mas agora com uma moldura oficial.
À noite, ele chegou cansado, jogou o paletó na poltrona e me abraçou pelas costas enquanto eu cortava legumes.
— Como foi seu dia? — perguntou.
— Tranquilo. Resolvi umas coisas do seguro ainda. — Mantive o tom leve, os olhos focados na faca deslizando pela cenoura.
— Seguro?
— É. Do acidente. — Fiz questão de olhar nos olhos dele nesse instante. Ele piscou rápido, desviou, e foi até a geladeira pegar água.
Eu sabia ler cada micro expressão daquele rosto. E naquele segundo, entendi: ele sabia que estava sobre um fio. Só não fazia ideia de que eu já segurava a tesoura.
Depois do jantar, esperei que ele se trancasse no escritório. Peguei meu celular e ativei a gravação automática do dele com a palavra-chave. Estava pronta para capturar qualquer deslize. Não demorou. Ouvi a voz abafada dele, falando sozinho enquanto digitava:
— Preciso mandar mais uma quantia… ela não pode desconfiar.
Meu peito se apertou, mas não chorei. Em vez disso, anotei no diário:
6.Transferência nova.
Quando ele voltou para o quarto, já estava deitada, olhos fechados. Ele se deitou ao meu lado, suspirou pesado e apagou em minutos. Eu fiquei acordada, olhando para o teto, sentindo a respiração dele ao meu lado.
E pensei: três anos eu dormi ao lado de um inimigo. Mas agora, cada noite será apenas contagem regressiva.
Porque já não era mais sobre sobreviver.
Era sobre cobrar.