Nunca gostei de cafés de esquina. Sempre achei que o cheiro de pão queimado e o barulho constante de xícaras batendo contra o balcão roubavam qualquer encanto. Mas naquela manhã, aquele café pequeno e esquecido da cidade se tornou palco do meu primeiro movimento direto contra ele.
Sentei-me à mesa mais afastada, de frente para a rua. As janelas empoeiradas filtravam a luz do sol em feixes oblíquos, como se o tempo ali dentro fosse outro. Pedi um cappuccino e esperei.
Ele chegou dez minutos depois. O amigo. O confidente. O homem que eu ouvi, escondida no corredor, aconselhar meu marido a contar a verdade. Alto, cabelos começando a ficar grisalhos, expressão cansada de quem carrega segredos demais. Assim que me viu, hesitou. Quase voltou. Mas meus olhos o seguraram.
— Obrigada por vir — falei, antes que ele abrisse a boca.
Ele puxou a cadeira e sentou, o corpo rígido. — O que você quer?
Sorri, calma. — Quero conversar.
— Não sei sobre o quê.
— Claro que sabe — retruquei, inclinando-me para frente. — Você sabe tudo.
O silêncio entre nós foi denso, como fumaça de cigarro. Ele mexeu as mãos, inquieto. Eu não tirei os olhos dele, porque aprendi que a calma desconcerta mais do que a fúria.
— Eu não posso… — começou, mas interrompi.
— Você pode. E deve.
O garçom trouxe meu cappuccino e um expresso para ele. Aproveitei a pausa para observá-lo melhor. O amigo parecia mais velho do que realmente era, como se os anos ao lado do meu marido tivessem consumido sua vitalidade.
— Olha, — ele começou, suspirando. — Eu tentei fazê-lo contar. Mas ele é covarde. Sempre foi.
O gosto amargo do café queimou minha língua. — E você ficou calado.
Ele ergueu os olhos para mim, ofendido. — Eu não sou cúmplice.
— É, sim — rebati, firme. — Quando você sabe de um crime e escolhe se calar, você se torna parte dele.
Ele abaixou a cabeça, mexendo no café como se pudesse encontrar respostas no fundo da xícara.
— Você não faz ideia do quanto eu lutei para convencê-lo… — murmurou. — Mas eu devia lealdade.
Ri, curta e seca. — Lealdade? A quem? A ele? Ou à mulher que matou meus pais?
O nome pairou não dito: Elena. Ele respirou fundo, passou a mão pelo rosto, e eu soube que estava vencendo.
— Por que me chamou? — perguntou, exausto.
— Porque você vai me ajudar.
Ele ergueu a cabeça, surpreso. — Eu não posso me envolver.
— Já está envolvido. — Inclinei-me, baixando a voz. — Mas pode escolher: ser cúmplice dele ou cúmplice da verdade.
O silêncio dele foi minha resposta.
Saímos do café juntos, mas em silêncio. O sol estava alto demais, a rua movimentada. Caminhei alguns passos ao lado dele e, antes que se despedisse, deixei meu recado:
— Pensa bem, Ricardo. — Usei o nome dele de propósito, para que não houvesse distância entre nós. — Da próxima vez que nos falarmos, quero respostas.
Ele apenas assentiu, os olhos carregados de peso. Eu sabia que ele precisava de tempo. Mas também sabia que eu havia plantado a dúvida.
À noite, em casa, meu marido parecia mais nervoso do que o normal. Andava pelo corredor falando ao telefone, voz baixa, como se o mundo inteiro fosse uma ameaça. Observei cada gesto, cada palavra.
— Não, não pode acontecer agora… Sim, eu sei… Ela não sabe de nada.
Ah, se ele soubesse.
Quando desligou, entrou no quarto e me encontrou sentada na cama, folheando um livro qualquer. Fingiu normalidade.
— Era o pessoal da empresa.
— Imagino — respondi, sem erguer os olhos.
Ele se aproximou, me beijou no topo da cabeça. O gesto automático de sempre. E foi nesse instante que senti: a máscara dele começava a rachar.
Mais tarde, sozinha no quarto, peguei meu caderno preto. Abri na página seguinte e escrevi:
9. Ricardo sabe mais do que disse. Pressionar até que quebre.
E abaixo disso, uma frase que saiu quase sozinha:
O inimigo do meu inimigo é meu aliado.
Sorri ao ver as letras no papel. A frase não era só um lembrete; era uma promessa.
Dois dias depois, encontrei Ricardo novamente. Dessa vez, não em um café, mas em um parque discreto, onde famílias passeavam e crianças corriam. O ambiente leve contrastava com a tensão entre nós.
— Eu não consigo mais carregar isso — ele disse logo, antes mesmo de sentarmos. — O que ele fez com você… o que ele fez com todos nós… não tem perdão.
Meu coração bateu mais rápido. — Então me conte. Tudo.
E ele contou. Falou da noite do acidente, do desespero do meu marido em esconder o envolvimento de Elena, das transferências de dinheiro, das consultas médicas forjadas. Disse que implorou para que meu marido parasse, mas que o amor cego dele por aquela mulher era mais forte do que qualquer amizade.
Eu ouvi cada palavra em silêncio, gravando na memória como se fossem provas vivas.
— Ele vai destruir você também, se continuar calada — Ricardo finalizou, a voz trêmula.
— Não — respondi, firme. — Quem vai destruir sou eu.
Naquela noite, voltei para casa e escrevi no diário:
10. Ricardo agora é meu aliado.
Fechei o caderno, guardei-o debaixo da cama e deitei ao lado do homem que um dia chamei de marido. Ele dormia pesado, como sempre. E eu fiquei ali, acordada, sentindo a respiração dele no escuro.
Só que, pela primeira vez em anos, não me senti prisioneira.
Senti-me predadora.
E estava só começando.