Ela precisava de dinheiro. Ele precisava de controle. Lucile Granger nunca quis viver uma vida dupla. Estudante de medicina dedicada, filha única cuidando de uma mãe doente, ela aceitou se tornar acompanhante apenas para pagar as dívidas que a sufocavam. Sob o pseudônimo de Carly, ela acompanhava executivos em jantares de negócios, com uma única regra: jamais se entregar. Até que a necessidade falou mais alto — e ela caiu nos braços do homem mais perigoso que poderia encontrar.
Leer másO bip constante do monitor cardíaco era a única coisa que me mantinha centrada naquela tarde. O quarto do hospital tinha cheiro de antisséptico e silêncio sufocado, interrompido apenas pela respiração calma da minha mãe, que finalmente dormia depois de mais uma sessão de quimioterapia. Eu ajeitei o lençol até a altura do peito dela, passei a mão pelos cabelos ralos que insistiam em cair e sorri com doçura, mesmo que por dentro tudo estivesse desmoronando.
Ficar ali era a única parte do meu dia em que eu sentia que tinha algum propósito. Mas, quando deixei o quarto e atravessei o corredor em direção à recepção, o peso da realidade voltou a me esmagar. — Srta. Granger? — chamou uma voz feminina, doce mas firme. Me virei e encontrei a recepcionista, segurando uma prancheta contra o corpo. Pela expressão no rosto dela, eu já sabia que não era um simples “boa tarde”. — Precisamos conversar sobre as despesas... — disse, baixando o tom de voz, como se tivesse medo de me expor ali, na frente de todos. — Algumas ainda não foram pagas e... o valor está aumentando. Um aperto queimou no meu estômago. Apertei a alça da bolsa contra o ombro e forcei um sorriso que mal se sustentava. — Eu vou pagar. Em breve. — Minha voz soou mais confiante do que eu me sentia. Ela apenas assentiu, com aquele olhar compreensivo que, no fundo, era piedade. E piedade era a última coisa que eu suportava. — Está bem. — disse ela, forçando um sorriso, que escondia uma preocupação por trás. Saí dali com o coração pesado, rezando para que não transferissem minha mãe para outro hospital. Interromper o tratamento dela seria condená-la, e eu não podia deixar isso acontecer. Lá fora, a garoa fina molhava o chão e desenhava pequenos reflexos nos carros estacionados. Apertei o casaco contra o corpo e encarei o relógio delicado no meu pulso. Hora de ir. Hora de ser alguém que eu não era. Suspirei fundo. A “agência Glamour” ficava do outro lado da cidade, e cada passo em direção a ela me lembrava de que eu estava presa a uma vida que nunca imaginei para mim. Mas quando a doença chegou e o desespero tomou conta, parecia ser o único caminho rápido para garantir um tratamento digno para minha mãe. Graças à Tori, que me indicou, eu consegui alguns extras que pagavam não só parte das despesas médicas, mas também os custos da faculdade de medicina. O prédio pequeno da agência tinha uma fachada discreta, quase anônima, mas por dentro era outro universo: paredes em tons de bege, luzes indiretas e um perfume de rosas que não saía nunca do ar. Assim que entrei, Harold levantou os olhos do computador e me chamou com um gesto seco da mão. — Carly. — O pseudônimo soou estranho como sempre, mas já era parte de mim. — Hoje você vai acompanhar um empresário em um jantar de negócios. O motorista vai buscá-la em algumas horas. Prepare-se para a ocasião. Assenti em silêncio. Estava acostumada. Imaginei que fosse mais um homem de meia-idade querendo exibir uma mulher bonita para inflar o próprio ego. Na minha mente, desfilei os rostos dos que já tinha acompanhado: alguns exóticos demais, outros tão comuns que sumiam da memória no instante seguinte. Subi para o quarto reservado às meninas e comecei a me arrumar. Escolhi um vestido cor salmon simples, reto, que abraçava minhas curvas sem ousar demais, e me sentei diante do espelho para fazer uma maquiagem leve. Foi quando ouvi a porta se abrir. — Está chovendo lá fora — reclamou Tori, sacudindo os cabelos molhados e jogando a bolsa em cima da poltrona. Eu engoli em seco. O barulho da chuva contra as janelas me trouxe lembranças que eu preferia enterrar. Não gostava de dias assim; eram gatilhos que me deixavam frágil demais. Mas não podia me dar o luxo de sentir medo agora. Havia coisas mais urgentes, como o risco de perder a única pessoa que eu tinha no mundo. — Vou acompanhar alguém num jantar de negócios hoje — avisei, passando o batom de leve. Tori arqueou as sobrancelhas, um meio sorriso irônico se formando nos lábios.Eu não sabia descrever o que estava sentindo. O coração martelava no peito, como se quisesse escapar. Minhas mãos suavam, mesmo com o ar fresco vindo das janelas abertas do salão. A imagem de Matt ali, no meio da festa da minha filha, parecia um pesadelo. Desses que você sabe que está sonhando, mas não consegue acordar. Fiquei parada por alguns segundos, observando ele se misturar aos convidados. Era como ver um segredo materializado em carne e osso, caminhando entre pessoas que não tinham ideia do que estava prestes a acontecer se a verdade escapasse. Lucile apareceu do meu lado, segurando uma taça pela haste, com o olhar preocupado. — Tori… você tá bem? — perguntou, inclinando o corpo levemente pra me observar de perto. — Você está pálida. Olhei pra Cori, correndo com outras crianças pelo playground decorado de fadas e luzinhas cintilantes. Cinco monitores observavam tudo com atenção, enquanto o riso das crianças tomava o ar como uma música viva. Por um instante, aquele s
O clube estava tomado por vozes infantis, risadas agudas, balões flutuando e o cheiro doce de bolo recém-chegado. A festa da Cori parecia saída de um sonho: fadas penduradas nos galhos, flores em tons pastéis, brilhos sutis espalhados nas mesas, como se realmente houvesse magia no ar. Lucile e Russ tinham se superado, e eu sabia que nenhum detalhe tinha sido poupado. Era o tipo de festa que qualquer criança de três anos lembraria por toda a vida, mesmo que só pelas fotos. Cori corria de um lado pro outro com as asas lilás presas nas costas, os cachinhos balançando enquanto ela gritava algo sobre ter visto uma fada “de verdade” perto da fonte. Lucile ria, com uma taça de espumante na mão, observando a cena com o olhar de quem estava completamente apaixonada pela própria afilhada. Russ conversava com alguns convidados, controlando o buffet e garantindo que tudo corresse perfeitamente. Eu, por minha vez, tentava respirar fundo entre um “oi”, um “obrigada por ter vindo” e um “a Cori
Os dias que antecediam ao aniversário da Cori eram um caos doce — aquele tipo de confusão que mistura ansiedade, culpa e laços de amor. Lucile, como sempre, resolveu tomar as rédeas de tudo, dizendo que era madrinha e que tinha “obrigação moral” de bancar a festa da afilhada. Eu até tentei argumentar, mas sabia que seria inútil. Quando Lucile decidia uma coisa, nem furacão mudava o rumo. — Vai ser no clube do centro — ela disse, empolgada, mexendo no celular e mandando mensagens enquanto falava. — Tem espaço pra brinquedo, buffet infantil e até lago. Cori vai amar. E ela tinha razão. Eu sabia que Cori ia amar. E eu também sabia que sem Lucile, nada disso seria possível. Então aceitei, meio sem jeito, meio aliviada, e mergulhei nas tarefas: lista de convidados, lembrancinhas, e outras coisas mais básicas. Tudo enquanto tentava manter a cabeça longe de Matt, o que era quase impossível. Naquela tarde, eu estava na cafeteria, no meu horário de almoço, com o caderno de anotações a
Os dias pareciam andar num compasso estranho, como se o tempo tivesse ficado preguiçoso, arrastando as horas só pra me testar. Faltavam poucos dias para o aniversário da Cori, e eu devia estar empolgada — de verdade devia — mas minha cabeça simplesmente não colaborava. Era como se cada pensamento meu se partisse em dois: metade tentando fingir normalidade, metade tentando não pensar em Matt. Cori, claro, estava em outro universo. Um onde bolo colorido, balões e amiguinhos da escola eram o centro do mundo. — Mamãe, eu quero convidar todo mundo da escola! — disse ela, com um sorrisinho e as bochechas vermelhas, os olhos brilhando como se o simples fato de existir um aniversário fosse o maior evento da galáxia. Eu ajeitava a louça na pia, tentando fazer contas mentais de quantas cadeiras cabiam na sala do apartamento e de quantos refrigerantes eu precisaria comprar, mas a verdade é que minha preocupação era outra. — Filha, a gente não pode chamar todo mundo, amor. A mamãe vai c
Os dias seguintes passaram arrastados, como se o tempo tivesse decidido me castigar pela bagunça que eu mesma criei. Eu tentava seguir a rotina, manter o foco no trabalho, sorrir para os clientes e fingir que estava tudo bem, mas por dentro, a mente era um turbilhão. Matt não apareceu na cafeteria durante toda a semana. Nem um telefonema, nem uma mensagem. Silêncio total. E, por algum motivo, isso me deixava pior do que se ele estivesse por perto. A ausência dele criava um tipo de vazio estranho, incômodo, como uma ferida aberta que eu fingia não ver. Eu me perguntava se ele havia desistido, se o beijo que trocamos no último encontro o fez se afastar de vez. E se fosse isso… por que doía tanto se era isso que eu queria? Enquanto limpava o balcão, eu tentava organizar as ideias. Talvez fosse a hora de ir embora. Conseguir outro emprego, proteger minha filha e me afastar de uma história que já nasceu torta. A cafeteria tinha sido o meu refúgio por meses… o primeiro lugar onde me s
A taça entre os dedos de Matt parecia ter o mesmo brilho que o olhar dele. O reflexo dourado do líquido acompanhava cada movimento que ele fazia, como se o universo inteiro prestasse atenção no modo como ele me olhava. Ficamos um tempo em silêncio, e eu quase consegui ouvir o som do vento batendo nas árvores do lado de fora do hotel, como se a natureza tivesse parado pra nos observar também. — Você lembra desse lugar? — ele perguntou, com aquela voz rouca, arrastada, quase um sussurro. Meu coração pulou no peito, e por um segundo, eu desejei não lembrar. Mas claro que lembrava. O hotel escondido entre a vegetação densa, o cheiro úmido da terra misturado ao perfume das flores silvestres. Lembrava das risadas, do barulho da água escorrendo pela pedra da cachoeira e dele — sempre ele — tentando me convencer a relaxar. — Lembro, sim. — minha voz saiu baixa, quase trêmula. — É impossível esquecer. Ele me observou como se estivesse tentando decifrar o que ainda havia de verdade
Último capítulo