A sensação era de estar flutuando, como se meu corpo não fosse meu. Forço as pálpebras a se abrirem e tudo que consigo enxergar, em meio à névoa da inconsciência, é o rosto dele. Spencer. Seu braço firme me sustentava, o maxilar cerrado, olhos faiscando uma fúria contida. Por um instante achei que estava sonhando, mas logo tudo voltou a escurecer.
Quando abri os olhos novamente, já era manhã. O quarto não era o meu — muito menos lembrava qualquer ambiente familiar. A cama enorme, o lençol branco demais, a cortina pesada deixando só um feixe de luz escapar. Um quarto de hotel. Meu coração disparou. Como eu tinha vindo parar ali?
Engoli em seco e, antes mesmo de me levantar, ouvi passos. Me virei e quase perdi o fôlego.
Spencer saiu do banheiro com apenas uma toalha enrolada na cintura. A pele ainda úmida, gotículas deslizando pelo peito definido, os músculos traçados sem exagero,e perfeitamente proporcionais. Ele esfregava outra toalha nos cabelos molhados, e por um momento eu me senti completamente exposta, mesmo vestida com uma camisa, que aparentemente, era dele.
Ele ergueu os olhos para mim, e uma sombra de algo entre preocupação e sarcasmo cruzou seu rosto.
— Como está se sentindo? — perguntou, a voz baixa, firme, quase como se adivinhasse o caos no meu olhar.
— O que... o que aconteceu? — minha voz falhou. — Nós... nós dormimos juntos?
Um sorriso torto surgiu em seus lábios, e foi como se estivesse se divertindo com meu desespero.
— Por que não tenta revirar a memória? — disse, com ironia calculada. — A noite foi... inesquecível.
Meu estômago revirou. Cruzei os braços na frente do corpo, tentando proteger o pouco de dignidade que me restava.
— Eu estou falando sério. O que acontece?
Ele suspirou, como se cansado do meu tom. O brilho divertido nos olhos dele se apagou, substituído por frieza.
— Você foi drogada. — As palavras dele caíram como pedras. — Se eu não tivesse tirado você daquela pista, aquele cara teria feito sabe-se lá o quê. Não sabia onde você morava, então trouxe você pra cá.
Minha garganta secou.
— E eu devo acreditar nisso? — rebati, com mais raiva do que coragem.
— Não se lembra mesmo do cara com quem estava dançando?
Revirei a memória, como ele sugeriu, e lembranças viam no efeito dominó, como em câmera lenta.
Eric. Bebida.
— Então você se aproveitou de mim enquanto eu estava... indefesa?
Ele me encarou, e nunca me senti tão lida na vida. Seus olhos azuis pareciam atravessar cada camada minha, decifrando mais do que eu mesma sabia. Mas ele não respondeu de imediato. Apenas se aproximou da cama, passos lentos, firmes.
Eu prendi a respiração. O ar ao redor parecia mais denso, a tensão entre nós quase palpável. Ele abriu a boca para falar, mas, antes que pudesse soltar qualquer palavra, o celular na cômoda vibrou e tocou.
Spencer desviou o olhar, resmungando algo inaudível, e foi atender.
Foi a minha deixa. Sem pensar duas vezes, pulei da cama, recolhi minhas roupas jogadas na poltrona e vesti tudo às pressas. A vergonha queimava minha pele. Eu precisava sair dali antes que ele tivesse a chance de me prender com aquelas palavras cortantes ou com aquele olhar que me desarmava.
Abri a porta e, para minha surpresa, um homem alto, de terno escuro, estava postado no corredor, como se fosse segurança dele. Antes que eu pudesse passar direto, ele estendeu um envelope em minha direção.
— O adicional — disse, com naturalidade perturbadora. — Obrigado pelos serviços.
O mundo girou. Eu segurei o envelope, mas o impulso imediato foi jogá-lo de volta. Não consegui. Meu corpo congelou, minhas pernas seguiram por instinto, e, quando percebi, estava no elevador.
O peso do papel nas minhas mãos me queimava. Dinheiro. Para eles, eu não passava disso.
As lágrimas ardiam, mas engoli todas. Eu não ia chorar na frente de ninguém. Mas, por dentro, era como se tivesse sido rasgada.
Eu não era Lucile. Nem Carly. Naquele momento, eu não era nada.
Voltei para casa com a mente embaralhada, como se cada pensamento fosse um nó impossível de desfazer. O caminho até meu apartamento parecia mais longo do que nunca. Meus pés caminhavam sozinhos, mas dentro de mim havia um vazio. O que tinha acontecido na noite anterior? Eu tinha sido... abusada? Só a palavra já me dava calafrios. Como eu poderia saber? Se eu estivesse apagada, como poderia ter certeza?
***
No espelho do banheiro, encarei meu próprio reflexo. Minhas olheiras estavam marcadas, a expressão cansada, como se eu tivesse envelhecido anos em uma única noite. Entrei no chuveiro e deixei a água quente cair sobre minha pele, tentando lavar a sensação de sujeira que parecia grudada em mim. Mas a dúvida permanecia.
Deveria procurar um médico? Fazer exames? Se realmente tivesse acontecido algo, aquilo era crime. E eu deveria denunciar. Mas... denunciar Spencer? Aquele homem tinha poder suficiente para me esmagar com um único movimento. Ele poderia contratar dezenas de advogados, enquanto eu mal conseguia manter as contas do hospital em dia.
Enrolei-me na toalha e, ao sair do banheiro, meus olhos caíram sobre o envelope deixado sobre a cama. As mãos tremeram quando o abri.
Cédulas. Muitas.
O ar me faltou. Era dinheiro suficiente para pagar o hospital da minha mãe e ainda segurar alguns meses de faculdade. Minhas mãos começaram a suar. Seria esse o preço da minha dignidade? Da minha virgindade?
Fechei os olhos com força, sentindo as lágrimas arderem. Parte de mim queria jogar aquele dinheiro fora, queimá-lo. Outra parte, mais realista, sabia que aquele dinheiro poderia salvar a vida da minha mãe.
Respirei fundo. Arrumei-me como se nada tivesse acontecido e fui para a faculdade.
As horas de aula passaram arrastadas. Eu tentava prestar atenção, mas tudo que conseguia ouvir era a minha própria mente, repetindo perguntas sem respostas.
Depois, segui direto para o meu turno na cafeteria. O cheiro de café moído e o barulho constante de xícaras sendo postas no balcão costumavam me confortar. Mas não naquele dia. Tudo parecia mais pesado, como se o mundo tivesse perdido a cor.
Quando o expediente acabou, fui ao hospital. Minha mãe estava deitada, mais fraca, mas ainda assim me sorriu quando me aproximei. Passei alguns minutos ao lado dela, conversando sobre coisas simples, enquanto a enfermeira me atualizava sobre os cuidados e os remédios. Falei também com o médico, que me explicou os próximos passos do tratamento. A cada palavra dele, o peso do dinheiro em minha bolsa parecia aumentar.
Mais tarde, quando minha mãe adormeceu, saí do quarto e encontrei Tori no corredor. Ela me abraçou com força, como sempre fazia.
— Você parece... estranha — disse, franzindo a testa. — O que aconteceu?
Hesitei, mas precisava desabafar com alguém. Respirei fundo.
— Aconteceu de tudo quando sai com esse cliente. Eu acordei em um quarto de hotel, com ele. Não lembro de nada, Tori. Nada. Só sei que estava com ele e... e tinha muito dinheiro me esperando quando saí.
Contei tudo, em detalhes. Os olhos dela se arregalaram.
— Quanto dinheiro ele deu?
Engoli em seco.
— O suficiente para pagar o hospital e a faculdade por meses.
Tori assobiou, incrédula.
— Uau... quando eu perdi a virgindade, ganhei no máximo um "foi bom pra você?". — Tentou brincar, mas percebeu que não consegui rir. — Ei... você acha que ele... fez alguma coisa mesmo?
— Não sei! — minha voz saiu embargada. — É isso que me destrói. Se ele fez, é crime, Tori. Mas se eu denunciar, vou contra alguém com poder demais. E se ele não fez nada? Como vou saber?
Ela segurou minhas mãos.
— Você já está num hospital. Pode falar com um médico. Agora.
Aquilo fez sentido. Sem pensar muito, pedi para falar com um ginecologista do plantão. Uma médica me recebeu com olhar calmo, me fez algumas perguntas e realizou o exame. O silêncio da sala parecia gritar enquanto eu esperava o resultado.
Ela me fitou, firme.
— Seu hímen está intacto. Você ainda é virgem. Não há sinais de violência ou relação sexual.
Fiquei sem ar.
— Tem... certeza? — minha voz era apenas um sussurro.
— Absoluta — respondeu. — Não há dúvidas.
Saí do consultório atônita, quase tropeçando no corredor. Então, por que aquele dinheiro? Por que o adicional era tão alto?
A dúvida não saía da minha mente, mas, naquele instante, tomei uma decisão prática. Usei parte das cédulas para quitar as despesas do hospital. Pelo menos minha mãe teria garantido o tratamento. Mas dentro de mim, nada estava garantido. Só restava o vazio — e uma pergunta sem resposta martelando na minha mente.
Por que Spencer me deu tanto dinheiro?