Dom, 35 anos, é um viúvo solitário que perdeu Ana Carolina e, com ela, a vontade de continuar. Na noite em que decide desistir, o destino o freia com a força de um farol na escuridão: Marvila, grávida e debilitada, cambaleia à beira da estrada sob um frio grande. Quase atropelada, ela é amparada por ele; sem saber, salva Dom do abismo ao qual ele já se entregava. Abandonada pelo ex-namorado, agora preso, sem dinheiro e recém-chegada a uma cidade desconhecida, Marvila sobreviveu semanas em uma pensão, escondendo a gravidez avançada e a vergonha de voltar para casa. Quando não lhe restava mais onde dormir, Dom a leva para seu lar gelado de lembranças e, ao resgatá-la do frio, encontra um fio de calor que não sentia desde Ana Carolina. Do encontro improvável entre dois corações partidos nasce uma conexão que desafia culpas, lutos e segredos. Entre o silêncio da perda e o choro prestes a nascer, Dom e Marvila descobrem que o amor pode ser, ao mesmo tempo, abrigo e coragem e que a vida, às vezes, recomeça justamente quando tudo parecia ter chegado ao fim.
Leer másMarvila foi abandonada pelo namorado quando ele foi preso. Sem família que a amparasse e com a gravidez já avançada, mudou-se para uma cidade nova em busca de emprego. Passou algumas semanas em uma pensão barata até ficar sem dinheiro. Desempregada e tentando esconder a barriga debaixo de casacos largos, decidiu voltar para casa de ônibus e se humilhar diante da família do ex. Mas, naquela madrugada chuvosa, perdida pelas ruas, quase foi atropelada.
Dom, viúvo e solitário, dirigia sem destino certo, prestes a desistir da própria vida. Foi por um triz que não a atingiu. Ao vê-la trêmula e encharcada, ofereceu ajuda, quando soube que ela não tinha onde dormir, levou-a para sua casa e a resgatou do frio. Era uma noite triste, daquelas em que o vento parece trazer lembranças antigas pelo ar. Havia dias que a chuva não dava trégua, e Dom, imóvel diante da janela embaçada de sua mansão silenciosa no interior, passava horas observando as gotas escorrerem pelo vidro, como se cada uma carregasse um fragmento da dor que o consumia há algum tempo. Aquela data não era qualquer dia. Era o aniversário da morte de sua esposa, Ana Carolina. Negra, riso fácil, presença luminosa, ela fora sua razão e seu equilíbrio. Anos antes, ao descobrir que Dom a havia traído, ela tirou a própria vida. Desde então, ele nunca mais fora o mesmo. A perda o dilacerou de dentro para fora e, em vez de curar, o tempo apenas aprofundava o vazio e a culpa. Dom tinha 35 anos. Era um homem negro, de beleza discreta marcada agora pelo desalinho. A barba crescia sem cuidado, espessa e desalinhada. O cabelo, antes sempre bem aparado. Suas roupas, antes impecáveis e sociais, haviam sido substituídas por peças simples de academia, camisetas largas, calças de moletom, tênis gastos. Não por conforto, mas por indiferença. Já não se importava com aparências, nem com o mundo lá fora. Rico, sim. Solitário, mais ainda. A mansão onde se isolava parecia um mausoléu de memórias, cada cômodo impregnado de lembranças de Ana Carolina. A alegria que o tornava vaidoso e cheio de vida partira com ela, deixando um eco de arrependimento insuportável. Naquela noite chuvosa, diante da janela, Dom tomou uma decisão silenciosa sobre o próprio destino. Algo dentro dele dizia que não havia mais por que continuar. Sem filhos, afastado dos familiares, sem qualquer coisa que lhe desse alegria ou conforto, organizou documentos sobre a cama, numa pasta de plástico amarela, gesto de quem encerra um ciclo. Buscava, inutilmente, o conforto das boas lembranças: risos no café da manhã, jantares à luz de velas no quintal, planos de um futuro que nunca chegou. Enquanto dirigia pelas ruas desertas, com a chuva martelando o para-brisa, Dom pensava em desistir de vez. Foi então que, ao dobrar uma curva, algo chamou sua atenção, uma jovem loira, caminhando lentamente. Estava curvada, lutando contra a força da tempestade. Grávida, visivelmente exausta, braços encolhidos dentro de um casaco encharcado, uma mochila nas costas. Parava de tanto em tanto, como se cada passo fosse uma batalha. Por mais frio e rude que pudesse parecer, havia em Dom uma educação antiga que não lhe permitia ignorar alguém em apuros. Sem pensar duas vezes, deu a volta com a caminhonete e se aproximou, estacionou. O coração acelerou, não pelo trânsito, mas pela urgência estranha que aquela imagem lhe despertava. A moça parou com a mão na barriga, com os olhos semicerrados pela dor. Ele abriu a porta e correu até ela. — Olá, moça… você está bem? — perguntou, com a voz firme, carregada de preocupação. Ela o olhou e tentou responder entre uma contração e outra: — São só… contrações de treinamento… eu acho… — Tudo bem. Obrigada. Dom olhou em volta. A rua molhada, árvores vergadas pela ventania, ninguém por perto. — Quer uma carona? Entra no carro. Você não pode ficar aqui desse jeito. Ela hesitou, desconfiada, mas exausta demais para discutir. — Eu… não quero incomodar… Ia me abrigar ali e esperar a chuva passar. Ele alcançou a mochila com cuidado. — Não está incomodando. Vamos. Você precisa se aquecer. Não pode ficar doente, grávida. Marvila entregou a mochila e entrou com dificuldade, sentando-se com delicadeza. Dom a ajudou, fechou a porta e correu para o lado do motorista. Ela não perguntou nada, por um instante, sentiu-se segura. — Obrigada por parar… Eu ia na rodoviária. — O final da gestação é difícil.— respondeu ele, num tom baixo. Pela primeira vez em muito tempo, Dom sentiu algo diferente, um impulso de proteger, de cuidar, como se um fio de humanidade ainda resistisse debaixo das ruínas. — Vamos para minha casa. Você toma um banho, troca de roupa. Depois vemos o que fazer. Eu te levo aonde quiser. Marvila permaneceu em silêncio, tremendo de frio, abraçada à barriga. Ao chegarem, o portão automático se abriu e ele estacionou. — Você deu sorte. — disse. — Ninguém passa por lá, a essa hora. Marvila olhou ao redor, atenta e tímida. — Eu estava perdida. Não conheço nada aqui.Marvila ficou paralisada, sem saber o que responder. O coração batia acelerado, e a sensação de estar sendo testada a sufocava. A mulher loira, ainda sorrindo com ar provocador, estendeu a mão com fingida cordialidade.— Janete. — disse, com a voz doce demais para soar verdadeira.— Amiga antiga do Dom.Marvila apenas a cumprimentou, num aperto de mão breve e gelado. Sentia o olhar de Janete varrendo sua barriga como quem julgava cada detalhe.Nesse momento, Dom se aproximou com uma garrafa de água. Entregou-o a Marvila, que bebeu rápido, tentando disfarçar o desconforto.— Olá, Dom. — disse Janete, rindo com a mesma ousadia.— Fiquei surpresa em te ver por aqui. E mais ainda em conhecer a… noiva.Dom manteve o semblante sério, mas cordial.— Janete. Quanto tempo.Marvila observava em silêncio, cada gesto, cada palavra. A naturalidade dele parecia contrariar o que a loira havia insinuado. Mas a dúvida já tinha se instalado em seu peito.— Pois é. — continuou Janete, ajeitando o cabelo
Marvila segurava o pote grande de sorvete cheio de coberturas e se sentou com Dom à sombra de uma árvore na praça. Ele preferiu um picolé simples, mordendo distraidamente enquanto a observava. O silêncio entre eles era denso, e o sorvete de Marvila começou a derreter, escorrendo pela colher e caindo sobre sua barriga.As palavras de Dom ecoavam em sua mente como uma promessa e, ao mesmo tempo, como um peso. Ele falava com uma certeza que a confundia, a certeza de um homem que já havia desistido de si, mas que, ainda assim, estava disposto a lutar por ela e pelo bebê.— Dom… — ela murmurou, com a voz trêmula.— Sobre a festa… eu tenho vergonha. Isso é um erro, se expor.Ele parou, pegou um guardanapo, sem hesitar, limpou com cuidado a barriga dela, retirando o sorvete que escorria. Depois, a olhou nos olhos com uma seriedade que quase a deixou sem ar.— Eu já cometi muitos erros, Marvila. Mas você não é um deles. — disse firme, com a voz carregada de verdade.— Você é a chance de fazer
Marvila ficou vermelha com o comentário. Não sabia se agradecia ou se se escondia. Tocou a barriga como se quisesse protegê-la dos olhos de Dom.— Sorte... não sei. — murmurou.— Só sei que, quando olho para ela, sinto medo e esperança ao mesmo tempo. Uma força da natureza e uma companhia.Dom respirou fundo. O jeito dela falar lhe lembrava Ana Carolina, que dizia quase as mesmas palavras quando a gravidez deles ainda era um sonho distante. Ele desviou o olhar, engolindo a emoção, e mudou de assunto:— Vou preparar um chá de erva doce, capim santo. Vai te ajudar a dormir melhor.Marvila sorriu, envergonhada.— Eu me viro. Já fiz você perder o sono demais.Ele colocou a caneca no fogo, ignorando a tentativa dela de se afastar.— Você não entende, Marvila. Cuidar de você... tem me feito lembrar que eu ainda estou vivo.As palavras ficaram suspensas no ar. Marvila o olhou, surpresa, e depois abaixou os olhos, apertando os lábios. Não queria se apegar, mas algo dentro dela amolecia com ca
Marvila sorriu envergonhada. As pessoas do restaurante, chocadas, observavam os dois, que pareciam um casal feliz e apaixonado, com um bebê a caminho. Os dois saíram rapidamente do restaurante e foram para casa, nem foram ao advogado. Dom começou a falar sobre a cidade, as pessoas, sobre quem era legal ou não, falso ou honesto.Ao chegarem em casa, ele disse que ia comprar tinta para começar a reforma. Marvila agradeceu novamente o almoço e foi deitar. As horas passaram e ela dormiu deliciosamente, descansando. Ainda era de tarde quando ela acordou com um barulho no quintal. Curiosa, ela foi até a janela e viu Dom. Ele estava sem camisa, apenas de calça, lixando um banco no jardim. Ela se encostou, surpresa com a definição do corpo dele e a barriga tanquinho. Sentiu-se segura para espiar e, curiosa, saiu do quarto.Ao ouvi-lo martelando algo, ela se sentiu à vontade para explorar a casa. Tentou abrir a porta de um dos quartos, mas estava trancada. O outro estava aberto, tinha uma cama
Marvila foi ao banheiro, colocou a camisola e voltou para a sala de exames. Nervosa, ela viu Dom em pé ao lado da maca e ficou surpresa. Ele a ajudou a se sentar. O Dr. Daniel estava explicando o que seria feito, primeiro a ultrassonografia, depois o exame de toque. Marvila estava tão nervosa que não entendia nada. Cheia de vergonha, ela falou:— Eu me cortei toda, me depilando.O doutor riu e disse que era normal. Dom estava perto da cabeça dela, observando o monitor. A ultrassonografia começou, e os batimentos cardíacos do bebê ecoavam na sala. Havia uma moça no computador digitando as informações. Dom ficou calado, observando, e Marvila estava encantada. Ela não chorou, apenas ficou olhando para o bebê, emotiva. O doutor não disse qual era o sexo do bebê, e ela não perguntou.A ultrassonografia terminou, e o médico confirmou que a gestação estava no final, com mais de trinta e seis semanas. Ele também percebeu o quanto Marvila parecia pouco instruída. O médico passou uma dieta e ex
Quando ele voltou para a cozinha, a cena o surpreendeu. O jantar estava pronto, a mesa arrumada, e o cheiro de comida caseira preenchia o ar, carne cozida com mandioca, arroz, feijão preto, salada de alface. Ele olhou para Marvila, que o esperava com um sorriso no rosto.— Não precisava ter feito tudo sozinha. — ele disse.— Eu ia te ajudar. Sente-se, você precisa descansar.Marvila sorriu e sentou-se.— Eu gosto de cozinhar. Posso te perguntar algumas coisas? Ainda estou confusa.Dom concordou e serviu os dois. Ela começou a falar, apreensiva.— Você não tem família? E se eles brigarem comigo? Querendo saber se é o pai do bebê? E se me acharem interesseira?Dom suspirou e sentou para comer.— Eles não têm esse direito, a vida é minha. Fique tranquila, você vai ter todos os seus direitos garantidos.Marvila o olhou, séria.— Não quero ter nada seu. Só o seu sobrenome, essa ideia parece incrível.Ele sorriu, curioso.— E já escolheu um nome novo?Marvila disse que ainda não, e pergunto
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