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O bip constante do monitor cardíaco era a única coisa que me mantinha centrada naquela tarde. O quarto do hospital tinha cheiro de antisséptico e silêncio sufocado, interrompido apenas pela respiração calma da minha mãe, que finalmente dormia depois de mais uma sessão de quimioterapia. Eu ajeitei o lençol até a altura do peito dela, passei a mão pelos cabelos ralos que insistiam em cair e sorri com doçura, mesmo que por dentro tudo estivesse desmoronando.
Ficar ali era a única parte do meu dia em que eu sentia que tinha algum propósito. Mas, quando deixei o quarto e atravessei o corredor em direção à recepção, o peso da realidade voltou a me esmagar. — Srta. Granger? — chamou uma voz feminina, doce mas firme. Me virei e encontrei a recepcionista, segurando uma prancheta contra o corpo. Pela expressão no rosto dela, eu já sabia que não era um simples “boa tarde”. — Precisamos conversar sobre as despesas... — disse, baixando o tom de voz, como se tivesse medo de me expor ali, na frente de todos. — Algumas ainda não foram pagas e... o valor está aumentando. Um aperto queimou no meu estômago. Apertei a alça da bolsa contra o ombro e forcei um sorriso que mal se sustentava. — Eu vou pagar. Em breve. — Minha voz soou mais confiante do que eu me sentia. Ela apenas assentiu, com aquele olhar compreensivo que, no fundo, era piedade. E piedade era a última coisa que eu suportava. — Está bem. — disse ela, forçando um sorriso, que escondia uma preocupação por trás. Saí dali com o coração pesado, rezando para que não transferissem minha mãe para outro hospital. Interromper o tratamento dela seria condená-la, e eu não podia deixar isso acontecer. Lá fora, a garoa fina molhava o chão e desenhava pequenos reflexos nos carros estacionados. Apertei o casaco contra o corpo e encarei o relógio delicado no meu pulso. Hora de ir. Hora de ser alguém que eu não era. Suspirei fundo. A “agência Glamour” ficava do outro lado da cidade, e cada passo em direção a ela me lembrava de que eu estava presa a uma vida que nunca imaginei para mim. Mas quando a doença chegou e o desespero tomou conta, parecia ser o único caminho rápido para garantir um tratamento digno para minha mãe. Graças à Tori, que me indicou, eu consegui alguns extras que pagavam não só parte das despesas médicas, mas também os custos da faculdade de medicina. O prédio pequeno da agência tinha uma fachada discreta, quase anônima, mas por dentro era outro universo: paredes em tons de bege, luzes indiretas e um perfume de rosas que não saía nunca do ar. Assim que entrei, Harold levantou os olhos do computador e me chamou com um gesto seco da mão. — Carly. — O pseudônimo soou estranho como sempre, mas já era parte de mim. — Hoje você vai acompanhar um empresário em um jantar de negócios. O motorista vai buscá-la em algumas horas. Prepare-se para a ocasião. Assenti em silêncio. Estava acostumada. Imaginei que fosse mais um homem de meia-idade querendo exibir uma mulher bonita para inflar o próprio ego. Na minha mente, desfilei os rostos dos que já tinha acompanhado: alguns exóticos demais, outros tão comuns que sumiam da memória no instante seguinte. Subi para o quarto reservado às meninas e comecei a me arrumar. Escolhi um vestido cor salmon simples, reto, que abraçava minhas curvas sem ousar demais, e me sentei diante do espelho para fazer uma maquiagem leve. Foi quando ouvi a porta se abrir. — Está chovendo lá fora — reclamou Tori, sacudindo os cabelos molhados e jogando a bolsa em cima da poltrona. Eu engoli em seco. O barulho da chuva contra as janelas me trouxe lembranças que eu preferia enterrar. Não gostava de dias assim; eram gatilhos que me deixavam frágil demais. Mas não podia me dar o luxo de sentir medo agora. Havia coisas mais urgentes, como o risco de perder a única pessoa que eu tinha no mundo. — Vou acompanhar alguém num jantar de negócios hoje — avisei, passando o batom de leve. Tori arqueou as sobrancelhas, um meio sorriso irônico se formando nos lábios.






