Enya nunca planejou nada além de sobreviver. Expulsa da casa da irmã por um cunhado que a despreza, ela se refugia num apartamento apertado e numa noite de festa universitária. Uma noite que começou como fuga e acabou virando o maior erro — ou talvez a única chance de mudar tudo. Duas semanas depois, um teste de gravidez a arranca do torpor. Ela não sabe quem é o pai. Só tem lembranças de um cheiro quente, de mãos que a seguraram como se fosse a única coisa certa num mundo que desmoronava. A irmã, Nádia, não quer ouvir. A melhor amiga, Bruna, insiste que não é só um erro a ser apagado. Mas a maior surpresa ainda está por vir: o homem que Enya esqueceu também está mais perto do que imagina. Érico Monteverde nunca quis ser nada além do próprio dono do seu destino. Mas o nome que carrega é uma herança que fede. Ele vive pra esquecer o pai, a pressão de um futuro que não quer, e o vazio que carrega no peito. Só não imaginava que no meio de uma cerveja esquecida, ouviria o grito de uma vida que nasceu na escuridão — e que agora vai reescrever o que ele achava que sabia sobre amor, lealdade e sobrevivência. Monteverde é uma história de erros e recomeços. Um romance que rasga e costura sem pedir licença. Onde cada passo em falso tem o preço de uma vida — e cada silêncio esconde o peso de um passado que ninguém quer admitir.
Leer másEu não sabia que o inferno podia começar numa sala de estar.
Nem que o estalo de uma porta batida pudesse doer mais que qualquer tapa.
Mas quando o meu cunhado — aquele bastardo de fala mansa e olhar podre — me disse que eu não servia nem pra esquentar o sofá da casa dele, eu soube. O inferno tinha nome, cheiro de cigarro barato e um suspiro de nojo estampado no canto da boca dele.
— Some daqui, Enya. Vai viver de favor em outro lugar — ele cuspiu as palavras como se eu fosse sujeira na sola do sapato.
Eu nem discuti. A casa dele nunca foi minha. E naquele instante, eu só queria sumir.
A Nádia tentou me segurar, mas eu não deixei. Ela ainda chorou quando bati a porta, mas eu não chorei. Eu tava seca por dentro, como se toda lágrima tivesse virado fumaça e desaparecido.
Eu só tinha uma mala nas costas e uma raiva que latejava no fundo do peito.
Foi aí que a Bruna apareceu.
Me encontrou na calçada, o cigarro pendurado no canto da boca, o batom vermelho borrado de quem já tinha começado a noite bem antes de mim.
— Vem, Enya. Eu tenho um colchão no chão e um armário meio capenga. Fica lá até se ajeitar.
— Não sei nem pra onde vou, Bru.
— Então vem pra festa comigo. Você vai esquecer tudo por uma noite.
E eu fui. Porque naquela hora, eu não queria lembrar de nada.
Não queria lembrar do olhar da Nádia, da voz do meu cunhado me expulsando, da vida que parecia se rasgar na beirada de cada passo. Eu só queria sentir alguma coisa que me fizesse lembrar que eu ainda estava viva.
A festa estava tão cheia que o ar parecia pegajoso, colando no corpo como suor. A Bruna, meio bêbada mas ainda lúcida o bastante pra me puxar pela mão, me arrastou pro meio da pista. A música batia no peito como um soco, e eu deixei a batida me guiar. O copo de plástico balançava na minha mão, e cada gole queimava mais do que o anterior.
Eu não sei quanto tempo se passou.
Eu sei que eu dançava sem parar, que eu girava até a vista escurecer.
E no meio do turbilhão, eu vi ele.
Érico.
Não era um nome ainda. Era só um rosto. Um rosto que parecia feito pra me destruir de dentro pra fora.
Ele estava ali, com aquele olhar de quem também carregava o próprio inferno no peito. E eu sabia — antes mesmo de chegar perto — que aquela noite não ia terminar bem.
Eu fui até ele como quem vai até a beira do precipício.
Ele me olhou como quem vê a própria queda refletida nos meus olhos.
A gente não trocou palavra.
Eu só puxei a camisa dele e beijei. Beijei como quem precisa rasgar a dor no corpo do outro.
Ele retribuiu como se quisesse me engolir inteira.
As mãos dele na minha cintura. As minhas unhas nas costas dele. O gosto de álcool e desespero misturado no beijo.
A gente se perdeu num canto escuro, atrás de um sofá empilhado, enquanto o mundo girava em volta.
Ele me empurrou contra a parede, e eu deixei.
Eu gemia baixo, o corpo tremendo, mas eu queria mais. Eu queria esquecer o mundo inteiro naquela respiração quente no meu pescoço.
Eu queria esquecer o rosto do meu cunhado, o choro da Nádia, o medo de ficar sozinha.
Eu queria morrer naquela noite e nascer de novo.
Mas, mal sabia eu que o inferno na minha vida só estava começando.
Capítulo 30EnyaAcordei com fome naquela segunda-feira. Pensei num café com leite e um pão com manteiga, fui pra cozinha animada, mas bastou o vapor da xícara bater no meu nariz pra o enjoo chegar feito onda brava. Respirei fundo várias vezes, de frente pra janela, tentando me manter firme. Não tinha nada no estômago, e mesmo assim o corpo ameaçava botar tudo pra fora.Consegui tomar só metade do café da manhã.Bruna apareceu logo depois, já arrumada pra aula, com a maquete torta debaixo do braço. Tive que zoar.— Vai entregar esse negócio assim?— Dane-se. Não vale nota final, era só uma ideia...— Você e esse seu jeito de “tô nem aí” pra nada, né?Ela deu risada. E a gente saiu andando pra faculdade.Na entrada, Bruna me cutucou com o cotovelo, do nada:— Olha aquilo ali!Era o Érico.Ele vinha na nossa direção com um buquê de flores numa mão e duas caixas de bombom na outra. Quando chegou perto, me abraçou pela cintura e colocou os presentes nos meus braços.— Saiu o resultado!—
Capítulo 29MonteverdeO fim de semana foi mais uma amostra do que esse mundo virou: incompetência disfarçada de profissionalismo. Gente que não vale o que come, mas desfila diploma como se isso compensasse a mediocridade. Como eu sempre digo: gado só engorda debaixo do olho do dono. E eu ando de olho em tudo.Laís me avisou: o idiota do meu filho levou a loirinha pro laboratório. Seguiu como eu mandei, confirmou o exame de DNA. O timing não podia ser melhor.Eu precisava da verdade antes dele.E, como todo jogo sujo, envolvia gente podre. Liguei direto pro delegado Rômulo Medeiros — cunhado da garota e com mais esqueleto no armário que necrotério de capital. Já tinha tentado me chantagear antes. Esqueceu que quem anda na lama escorrega fácil.— Não esperava sua voz tão cedo — ele atendeu, voz mansa de cobra prestes a dar o bote.— Deixa de cena, Rômulo. Vai fazer algo que preste pela primeira vez. Meu filho fez o teste com sua cunhadinha. Quero o resultado antes dele.— Tá achando qu
Capítulo 28ÉricoEu estava ansioso pelo resultado. Queria resolver tudo logo, proteger a Enya e o meu filho antes que meu pai metesse as mãos sujas onde não devia. Não ia permitir que ele se aproximasse deles.Na sexta-feira à noite, aceitei o convite de alguns colegas da faculdade pra tomar uma. Não estava no clima pra nada — muito menos pra flerte. E definitivamente não pra esbarrar com a Laís.Mas, como se o universo tivesse ouvido meus pensamentos e decidido me sacanear, lá estava ela.Apareceu no barzinho perto da faculdade quando eu e mais três amigos já estávamos sentados, tentando distrair a cabeça.— O que você tá fazendo aqui, Laís? — perguntei, direto.— Vim te ver, ué. Sei que vocês sempre vêm aqui.A voz dela soava mais aguda que o normal, como se estivesse irritada ou tentando disfarçar nervosismo.— Olha, hoje eu não tô afim de conversa.— Ai, Érico... não me trata assim, poxa. A gente é amigo desde criança...— Não quero saber. Hoje não.Meus amigos, que nunca foram c
Capítulo 27EnyaAté que essa gravidez não vinha sendo tão turbulenta quanto os relatos que eu via por aí. Os enjoos apareciam só pela manhã — às vezes o café voltava —, mas nada que me derrubasse. Eu lia histórias de mulheres que passavam o dia debruçadas em baldes, incapazes de levantar da cama. Era assustador. Mas, graças a Deus, comigo vinha sendo diferente.Na sexta-feira, o dia do exame chegou. Eu me sentia mais confiante do que aflita, mas não podia negar a ansiedade. Ver o Érico de novo era um evento. Aquele homem mexia comigo de um jeito que eu já nem tentava mais disfarçar. Fingir o quê, se até meu corpo entregava tudo antes de mim?Tomei um banho demorado, lavei os cabelos, caprichei numa maquiagem leve, passei meu perfume preferido e escolhi o vestido mais bonito que ainda me servia. Ele marcava suavemente a barriga, que começava a tomar forma. Me olhei no espelho e, pela primeira vez em dias, sorri de verdade.Foi nessa hora que Bruna entrou no quarto — trazendo junto o c
Capítulo 26ÉricoEu não tinha muito tempo. Sabia que o cerco estava se fechando, e se eu ficasse parado, iam passar por cima de mim — e dela. Só uma pessoa no mundo poderia me ouvir sem me julgar: minha mãe.“Mãe, posso passar aí?”“Claro, meu amor! Aconteceu alguma coisa?”“Depois a gente conversa. Um beijo.”Nem esperei resposta. Desci, entrei no carro e dirigi direto pra casa onde cresci. O velho, no divórcio, abriu mão daquela casa como quem joga migalha: “pode ficar com essa porcaria, é trocado perto do que eu tenho, e assim não vejo mais tua cara.” Ele achava que tinha saído por cima — mal sabia que aquela “porcaria” era o único lugar onde o amor realmente existiu.A casa continuava do mesmo jeito. Simples, aconchegante. Abri o portão com o controle que ainda guardo no chaveiro, entrei com o carro e estacionei. Vera, minha mãe, já me esperava na sala. Ela sempre soube quando eu estava prestes a desabar.Alta, magra, dona de uma elegância que o tempo não ousou roubar. Vestia um
LaísDepois do último encontro com o Monteverde, nada de novo apareceu. Só vi o Érico encontrar aquela loira sem graça e depois voltar pro apartamento. Pouco depois, o Aurélio — amigo do meu pai e do Monteverde — também chegou lá. Se ele foi pessoalmente, é porque alguma coisa séria estava acontecendo. E eu queria descobrir o quê.Estava no meu quarto, fazendo caretas pro espelho e tirando selfies por pura preguiça de existir, quando ouvi o carro do meu pai sendo guardado na garagem. Provavelmente ele sabia de alguma coisa. Larguei o celular na cama de qualquer jeito e desci as escadas, o salto ecoando no mármore como trilha sonora de novela.— Pai! — chamei, já o abraçando pelo pescoço e dando um beijo estalado na bochecha.— Oi, princesa! Tá cheirosa, vai sair?Eu era a única filha de Vicente e Cátia Werman — e, por isso, mimada com gosto. Estudei num colégio na Suíça, mas assim que terminei o ensino médio, meus pais me trouxeram de volta com uma missão clara: conquistar Érico Monte
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