Enya
Eu não dormi quase nada na noite anterior. A cabeça não parava de latejar, o medo me consumia e a voz da Bruna ecoava na minha cabeça, como um eco teimoso:
— Você tem que contar pra Nádia.
Eu sabia que tinha. Mesmo que doesse. Mesmo que me esmagasse por dentro.
Peguei o celular e disquei o número dela com as mãos tremendo. Ela atendeu no terceiro toque, a voz cansada como sempre.
— Alô?
— Nádia… sou eu.
— O que foi? — o tom dela ficou tenso de repente.
— A gente precisa conversar. Pessoalmente. — respirei fundo, tentando não desabar. — Hoje.
Houve um silêncio pesado do outro lado. Depois ela soltou um suspiro.
— Tá… me diz onde.
— Tem um barzinho aqui perto de casa. A Bruna disse que é tranquilo — eu falei, tentando soar calma. — Eu te mando a localização.
— Tá bom — ela disse, a voz já meio irritada. — Mas seja rápida.
Desliguei o telefone e fiquei parada olhando pra parede. A respiração saía curta, o estômago embrulhado. Eu nem sabia por onde começar.
O bar era pequeno, meio escuro, cheio de pôsteres de bandas velhas e cheiro de cerveja no ar. Eu cheguei cedo, sentei numa mesa num canto e fiquei esperando. O coração batia tão rápido que parecia querer sair do peito.
Quando a Nádia chegou, eu quase não a reconheci. O cabelo preso num coque mal feito, olheiras fundas, a blusa amassada. Ela se sentou de frente pra mim e cruzou os braços.
— Fala logo, Enya. O que você quer?
Eu respirei fundo e olhei nos olhos dela.
— Eu… eu tô grávida.
Ela arregalou os olhos. Um segundo de silêncio. Depois explodiu:
— O quê? Você enlouqueceu? Como é que você faz uma coisa dessas?
Eu me encolhi na cadeira, sentindo as palavras dela me cortarem por dentro.
— Eu… eu não planejei isso, Nádia. Foi um erro. Eu sei. Mas eu não sei o que fazer.
Ela suspirou fundo, os olhos cheios de pânico.
— E de quem é? — perguntou, a voz falhando.
— Eu não sei. Foi só uma vez. Eu nem sei o nome dele — eu disse, baixinho.
Ela passou a mão no rosto e balançou a cabeça, nervosa.
— Você é igualzinha à nossa mãe. Irresponsável, inconsequente. O meu marido sempre disse que você ia acabar assim… — a voz dela saiu fria.
Eu senti meu peito apertar, a respiração ficando curta.
— Nádia, por favor, não diz isso.
Ela me encarou, o olhar duro.
— Eu vou tentar conseguir dinheiro pra você tirar isso — disse, a voz baixa mas cheia de veneno.
Foi como levar um soco. Eu abri a boca, mas não consegui falar nada.
— É melhor pra todo mundo, Enya. Você não tá pronta pra isso — ela continuou, com aquele tom de quem quer decidir por mim.
Antes que eu conseguisse reagir, Bruna surgiu ao nosso lado. Ela tinha vindo me buscar, mas parou ao ouvir a última frase.
— Você tá louca? — ela disse, a voz firme. — Isso não é um pedaço de unha encravada, é uma vida, Nádia.
Nádia a olhou com desprezo, mas Bruna não se intimidou.
— Eu sei que vocês têm uma história fodida, mas não vai jogar essa merda toda em cima dela.
Eu comecei a tremer. O mundo girava, o cheiro de cerveja e fritura me sufocava. Eu levei a mão à testa, sentindo tudo escurecer.
— Enya? — Bruna perguntou, preocupada. — Enya, respira.
Mas o mundo já tinha ficado turvo. Eu senti o chão sumir debaixo dos meus pés e a escuridão me engolir.
Érico
Eu tava no balcão, com o copo de cerveja na mão e a cabeça em outro lugar. Só queria um pouco de silêncio depois da aula — não pra pensar em nada, mas pra não sentir nada.
A conversa atrás de mim começou baixa, mas ficou impossível de ignorar. Eu ouvi cada palavra, como se o bar inteiro tivesse parado pra ouvir também.
— Eu tô grávida.
— Vou conseguir dinheiro pra você tirar isso.
As palavras ficaram ecoando, e eu virei devagar, curioso — ou talvez só querendo ver o rosto de quem falava aquilo.
Foi quando eu vi ela.
A garota que eu não conhecia. Mas no segundo em que encostei nela, o cheiro que veio no ar me parou no tempo.
Doce e quente, acertou minha cabeça como uma lâmina.
Não fazia ideia de onde conhecia aquele perfume, mas me acertou como uma memória viva.
Ela começou a desmaiar, e sem pensar, larguei o copo e fui até lá. Segurei o braço dela antes que caísse de cara no chão.
— Ei… calma. Respira — minha voz saiu mais firme do que eu esperava.
Ela levantou os olhos pra mim, confusa e pálida.
Eu só fiquei ali, firme, segurando o braço dela.
Não fazia ideia de quem era ou do que estava acontecendo, mas não ia soltar.
— Quer que eu te leve pra casa? — perguntei, a mão ainda no braço dela, sem invadir.
Ela não respondeu de imediato, só ficou me olhando como se o mundo tivesse parado.
E naquele momento, tudo o que eu podia fazer era ficar ali, sem largar.