Érico
A cabeça latejava como se alguém tivesse batucando dentro do meu crânio. Eu abri os olhos devagar, o cheiro de cerveja choca e cigarro queimado me enjoando. Tudo ao meu redor era um borrão: almofadas jogadas no chão, copos vazios, garrafas tombadas. O gosto amargo de álcool ainda queimava na garganta, mas o que pesava de verdade era outra coisa. Era o que veio antes dessa ressaca toda. Eu fui pra festa pra fugir. Fugir do peso do meu próprio nome. Na certidão, eu sou Érico Monteverde Filho — mas eu não me considero filho desse homem há muito tempo. Ele saiu de casa quando eu ainda era pequeno, e mesmo longe, sempre soube como me arrastar de volta pro inferno dele. Na última vez em que a gente se encontrou, ele me olhou como quem mede o tamanho de um erro. — Engenharia? Engenharia não serve pra nada, moleque. Você vai estudar administração e vai cuidar das minhas empresas — ele disse, a voz firme como concreto, o tom tão frio que dava vontade de vomitar. — Eu não quero o que é seu — eu respondi, segurando a raiva com as pontas dos dedos. — Você não quer porque é fraco. Igual a essa mulher que me servia a comida e lavava minhas cuecas. Só fazia isso porque era obrigação — ele cuspiu, cada palavra dele me cortando como faca. Eu não sei como não voei no pescoço dele. Talvez porque eu soubesse que, se eu levantasse a mão, eu nunca ia parar. E ele foi embora antes que eu pudesse fazer qualquer coisa — foi embora como sempre fazia: largando um buraco no peito e me deixando com o gosto de sangue na boca. Foi por isso que eu fui pra festa. Pra esquecer. Pra tentar enterrar tudo isso em alguma batida de música alta e copos de plástico. Pra me afogar em alguma coisa que não fosse a voz dele martelando a minha cabeça. Mas mesmo ali, no meio do barulho, eu só conseguia sentir a voz dele queimando dentro de mim. Era como se ele estivesse ali, no escuro, me lembrando de quem eu era. Ou pior: de quem ele dizia que eu era. Eu me levantei devagar, o corpo zonzo, a cabeça pesada. Passei a mão na testa, sentindo o suor frio escorrer, como se a ressaca fosse mais do que só álcool. O peito apertava, o estômago revirava, mas eu só queria sair dali — me livrar daquele cheiro de cigarro, daquele sofá sujo, daquele quarto que não era meu. O cheiro dela ainda estava grudado em mim — perfume doce, pele quente. Mas eu nem sabia quem ela era. Só lembrava de mãos macias e de um beijo que queimava a garganta como a pior dose de vodka. No fundo, eu sabia que essa noite só ia trazer mais problema. Que eu não podia fugir pra sempre. Eu empurrei a porta e saí. A luz do sol me cegou por um segundo, batendo no rosto como um tapa que eu não tava esperando. O mundo lá fora parecia calmo demais pro que eu sentia por dentro — e eu nem sabia mais o que eu sentia, só queria sumir. Mas eu continuei andando. De volta pra casa. De volta pro lugar onde eu ainda tentava ser eu mesmo — mesmo carregando o nome que eu nunca quis. E, enquanto eu caminhava, eu só queria esquecer tudo. Mas sabia, lá no fundo, que esquecer nunca foi uma opção.