🌤 Entre o Sol e a Tempestade Autora: Nanny Bloom Lívia carrega no peito cicatrizes que não se veem, mas doem todos os dias. Mãe solo, dona de uma doçura resiliente e de uma fé cansada, ela só queria um lugar seguro para criar sua filha Manu — até que encontra abrigo em uma casa simples no interior, onde o tempo parece andar mais devagar. Rafael não fala muito. Carrega os próprios fantasmas e esconde o coração atrás de muros altos. Depois de perdas que deixaram buracos fundos, ele aprendeu a sobreviver no silêncio — até que a chegada de Lívia e de uma garotinha curiosa começa a rachar o concreto ao redor. Entre olhares que falam mais que palavras, tardes de reforma e cafés silenciosos, nasce uma relação tímida, mas intensa. E quando o passado bate à porta em forma de um filho que ele mal conhecia, tudo ganha novas camadas de amor, dor, cura… e escolha. Entre o Sol e a Tempestade é uma história sobre recomeços improváveis, sobre amar mesmo com medo, sobre famílias que se escolhem — e sobre como os afetos mais verdadeiros florescem nos lugares mais inesperados. Uma casa azul. Uma mulher marcada. Um homem em pedaços. Duas crianças com olhos de mundo. E um amor que resiste.
Leer másO silêncio dentro do carro parecia mais pesado do que a mala no porta-malas. O rádio chiava uma estação fora do ar, mas Lívia não desligava. Havia algo naquele ruído que combinava com a bagunça dentro dela.
O relógio marcava 5h37 da manhã. O céu ainda estava envolto por uma neblina fina, e a cidade grande dormia enquanto ela, finalmente, partia. Ao lado, no banco traseiro, a filha dormia abraçada ao urso de pelúcia que já perdera uma orelha. Manu não sabia ainda que aquele seria o começo de uma nova vida — ou talvez soubesse, da forma silenciosa que só crianças muito sensíveis sabem. Lívia olhou pelo espelho retrovisor, tentando ver algo da cidade que deixava para trás. Mas tudo que conseguiu ver foi a própria imagem: olhos cansados, cabelos presos de qualquer jeito, e uma expressão que misturava cansaço com esperança. Sete anos. Sete anos tentando se manter de pé por causa de uma filha. Sete anos de promessas não cumpridas, de ausência do pai da criança, de noites em claro equilibrando contas e fraldas. E agora, finalmente, estava indo embora. Para o interior de Minas, para uma cidade que não conhecia, para uma casa que alugou pela internet e só viu em fotos pixeladas. Mas era o que dava para pagar. E, mais do que tudo, era longe. Muito longe dele. A estrada parecia infinita. O céu foi clareando devagar, e a música começou a tocar baixinho no rádio: uma canção antiga que falava de recomeços. Lívia apertou os olhos, tentando conter as lágrimas. Não era hora de chorar. Já chorara demais. Ao parar num posto de gasolina na beira da estrada para tomar um café, recebeu um bom-dia sorridente de uma senhora com avental florido. Aquilo a desarmou. Sorriu de volta. Talvez estivesse mesmo no caminho certo. “Vai pra onde, moça?” perguntou a senhora, enquanto colocava o pão de queijo para esquentar. “Santana do Monte,” respondeu, com um sorriso que tentava disfarçar a incerteza. “Ai que cidade linda! Pequena, tranquila. Mas chove muito essa época… Leva um casaquinho.” Lívia assentiu, agradecida pela gentileza despretensiosa. Já fazia tempo que não era tratada com tanta leveza. De volta ao carro, Manu acordou com os olhos inchados e sussurrou: — A gente já chegou na nossa casa nova, mamãe? — Quase, meu amor — respondeu, esticando a mão para trás e segurando a da filha — Falta só mais um pouquinho. E ali estava ela, prometendo mais uma vez o que nem sabia se podia cumprir: um recomeço. Um lar. Paz. Horas depois, quando finalmente passou pela placa enferrujada que dizia “Bem-vindo a Santana do Monte”, sentiu um arrepio. A cidade era pequenina, com ruas de paralelepípedo e postes antigos. Um coreto na praça, uma igreja no topo do morro, e crianças brincando descalças na rua. Nada parecia ameaçador — pelo contrário, havia uma doçura no ar. Uma promessa. A casa azul era como nas fotos: simples, com varanda de madeira e janelas brancas. O jardim estava malcuidado, e havia poeira nos batentes, mas Lívia já conseguia imaginar flores ali, e a voz de Manu correndo pela varanda. Quando desceu do carro, sentiu o cheiro da terra úmida e ouviu ao longe o canto de um galo. Uma borboleta amarela passou perto de seu rosto e pousou no corrimão da escada. Ela fechou os olhos. Respirou fundo. Estava recomeçando. Do zero. Com medo. Com cicatrizes. Mas estava. E isso já era muito. ⸻A tarde estava morna e silenciosa. A chuva da noite anterior havia deixado o quintal com cheiro de terra molhada, e o jardim parecia mais vivo do que nunca. Lívia, deitada na espreguiçadeira, obedecia às ordens de repouso, mesmo com o coração inquieto de quem sempre esteve em movimento. Manu brincava com um caderno de desenhos na sombra do ipê. Desenhava pessoas com mãos grandes e sorrisos largos, do jeitinho que crianças fazem quando enxergam o mundo com generosidade. A cada traço torto, ela olhava para a mãe e sorria, como se quisesse a aprovação que sabia que viria. — Esse aqui é o papai Rafael — disse, apontando para um bonequinho de cabelo escuro e camiseta azul. — Está idêntico — Lívia sorriu. — E essa sou eu. E esse aqui é o bebê que tá na sua barriga. Coloquei ele no colo do papai porque ainda não sabe andar. Lívia riu. A simplicidade de Manu aquecia como chá num dia frio. — E quem é esse do lado? — perguntou, curiosa, ao ver outro bonequinho no desenho. Manu f
Era para ser só uma manhã comum. O céu estava limpo, o cheiro de pão caseiro se espalhava pela cozinha e Manu insistia em queimar as torradas porque queria “elas mais crocantes que o normal”.Lívia ria, como sempre ria das pequenas bagunças da filha, quando sentiu a fisgada. Uma dor breve, aguda, na parte baixa da barriga. Sua mão foi instintivamente até o ventre, e o sorriso escapou do rosto.— Mamãe? — Manu perguntou, preocupada.— Está tudo bem, meu amor — respondeu com a voz ainda firme. — Só preciso me sentar um pouquinho.Sentou-se na cadeira da cozinha, respirando fundo. Rafael, que vinha do jardim com um punhado de alecrim nas mãos, parou ao ver sua expressão.— O que houve?— Uma dor rápida. Nada demais. Só me assustou um pouco.Mas ele não comprou a resposta. Conhecia o jeito que ela tinha de minimizar tudo, inclusive o que sentia. Sem dizer mais nada, foi buscar uma almofada para suas costas e um copo d’água.— Vai deitar. Eu levo a Manu na escola hoje.Ela tentou protestar
Era cedo, mas Rafael já estava acordado. O cheiro de café recém-passado se espalhava pela cozinha enquanto ele, de pé diante da pia, observava a casa em silêncio. A torneira pingava com um ritmo irritante. O piso da sala ainda tinha uma tábua solta que prometia ser consertada “em breve”, e o quartinho dos fundos… bem, o quartinho ainda era só um depósito de caixas velhas e ferramentas esquecidas. Ele suspirou. A gravidez de Lívia estava entrando no oitavo mês, e o peso do tempo parecia se acumular nos ombros de Rafael. Era como se cada semana o lembrasse de algo que ainda não estava pronto. O bebê vinha aí, e ele ainda se perguntava se conseguiria ser o homem que todos esperavam. O pai que Bento precisava. O abrigo que Manu admirava. O amor que Lívia confiava. — Está queimando os olhos da parede ou pensando em arrancar tudo e começar de novo? — brincou Lívia, surgindo atrás dele, envolta no cheiro doce de sabonete de lavanda. Ele riu, sem graça. — Estou tentando entender como es
O vento daquela tarde parecia mais frio do que o habitual. Mesmo com o sol ainda alto no céu, havia algo no ar que trazia um arrepio sutil — como quando a gente pressente que alguma coisa está para mudar, mesmo sem entender o quê.Rafael havia acabado de recolher o varal. As roupas ainda estavam quentes do sol, e o cheiro de sabão misturado com lavanda era um dos pequenos prazeres simples que ele aprendera a amar na rotina com Lívia. Na varanda, Manu dormia de bruços no sofá, um livro de desenhos ainda aberto nas mãos. Bento estava no quarto, ouvindo música com fones de ouvido, algo que fazia quando queria se desconectar do mundo.Foi então que o portão bateu. Três vezes.Rafael olhou em direção à rua com as sobrancelhas franzidas. Não esperavam visitas. Ele desceu os degraus e caminhou até o portão, sentindo o coração acelerar sem motivo claro.Era o carteiro.— Boa tarde. Entrega pro senhor Rafael Mendes — disse o homem, estendendo um envelope pardo, com a borda amassada.— Obrigado
O sol da manhã caía suave sobre o quintal da casa azul. O outono chegava com promessas de folhas secas, silêncios leves e ventos que pareciam embalar a alma. Lívia estava ajoelhada na terra fofa, os dedos mergulhados no barro ainda úmido da última chuva. À sua frente, pequenas mudas de flores coloridas esperavam para ganhar um canto no jardim que ela mesma vinha cultivando com paciência. Paciência era o que ela mais aprendera ali.Dentro dela, o bebê se mexia com força. Os chutes vinham curtos, repetitivos. Era como se aquela sementinha humana também estivesse tentando encontrar um lugar para se enraizar. Lívia passou a mão pela barriga já crescida, com o cuidado de quem acaricia uma certeza.— Ele está dançando, mamãe? — Manu perguntou, aproximando-se com a regadorinha azul nas mãos, pingando mais água em seus tênis do que nas plantas.— Está, filha. Deve ter gostado da música do vento.Manu riu e girou em volta da mãe como uma bailarina desengonçada. Sua alegria era contagiante. Aqu
casa azul estava em festa.Na varanda, balões dançavam com o vento, e o cheiro de bolo de chocolate se misturava ao perfume das flores recém-colhidas do jardim. Era o aniversário de Manu, e tudo parecia mais vivo, mais cheio de cor. Como se a própria casa soubesse que havia motivos para sorrir.Rafael ajeitava os últimos detalhes na decoração, tentando prender uma faixa com letras tortas que dizia “Feliz Vida, Manu!” enquanto a fita adesiva insistia em não colaborar. Sol, o cachorro, latiu como se risse da cena.— Você devia colar com cola quente — disse Lívia, surgindo na porta com um sorriso sapeca.— Se eu usar cola quente, eu me conheço. Ia acabar colando minha mão na parede — rebateu ele, rindo.Ela se aproximou, colocando uma flor na orelha dele de propósito.— Agora sim, tá pronto pro parabéns.— Se a Manu me ver assim, vai achar que virei fada — disse ele, e os dois caíram na gargalhada.Bento apareceu com um balde cheio de confetes e Manu correu atrás dele, animada com a “mis
Último capítulo