O céu parecia hesitante naquela tarde. Nuvens densas se acumulavam em camadas como cobertores pesados, e o cheiro de chuva se espalhava pela pequena Santana do Monte como um aviso mudo.
Lívia estava na cidade há apenas quatro dias, e ainda se acostumava com o ritmo lento das horas. A manhã fora ocupada organizando os armários e limpando a varanda. No início da tarde, decidiu descer até o armazém local para comprar algumas coisas básicas: arroz, fósforos, um sabão mais cheiroso. Colocou a capa de chuva em Manu, calçou galochas na menina, e as duas seguiram pela estrada de terra batida. O vento já soprava mais firme, espalhando folhas secas pelo caminho e levantando pequenos redemoinhos entre os arbustos. No mercado, a dona do caixa as atendeu com um sorriso simpático e contou histórias demais sobre o tempo, como todo morador antigo costuma fazer. Foi na volta que tudo aconteceu. A estrada de terra, molhada pela garoa que começava a cair, rapidamente virou um pequeno atoleiro. O carro velho que comprara com o dinheiro da rescisão atolou sem cerimônia, os pneus traseiros girando em falso. Lívia tentou manter a calma, mas o volante tremia nas mãos. Manu dormia no banco de trás, cansada da andança, alheia ao pequeno caos. Ela desceu, avaliando o barro que já cobria seus sapatos. Não tinha sinal de celular. Nenhuma casa por perto. E a chuva engrossava. Respirou fundo. E foi quando ouviu. Passos lentos. Um cavalo, talvez. O som abafado de cascos na terra molhada. Virou-se, apertando os olhos contra a chuva fina. E lá estava ele. Montado num cavalo negro como noite fechada, com o chapéu escondendo parte do rosto e uma capa longa que balançava ao vento como nas histórias antigas. O homem parou a poucos metros e a observou em silêncio. Os olhos de Lívia o encontraram primeiro. Escuros. Profundos. Um olhar que não pedia permissão, mas também não oferecia explicação. — Seu carro está preso — disse ele, a voz firme e baixa, quase sem emoção. Ela assentiu, sem conseguir esconder o nervosismo. — Tentei sair… mas escorregou de vez. E… minha filha está no banco de trás. Preciso voltar pra casa. Ele desceu do cavalo com um movimento calculado, sem pressa. O silêncio entre eles parecia aumentar a cada segundo. Sem se apresentar, ele foi até a traseira do carro, examinou os pneus, abaixou-se. — Se tiver um pano ou corda, dá pra puxar com o cavalo. Lívia correu até o porta-malas e pegou uma corda antiga que achou com as coisas da mudança. Ele amarrou com precisão. Os dedos firmes, os gestos automáticos, quase como um ritual. Nenhuma palavra a mais. Nem mesmo um olhar. O cavalo puxou devagar, e o carro saiu do barro com um estalo súbito. Lívia sentiu o alívio subir pelas pernas como calor. — Obrigada… de verdade. Eu não sabia o que faria. Ele apenas acenou com a cabeça, já se virando para montar novamente. — Você mora… perto daqui? Foi a primeira pergunta dela. Ele hesitou, como se não gostasse de responder. — Ali na serra. E então a ficha caiu. — Você é o Rafael? Da fazenda? Ele parou. Olhou diretamente nos olhos dela, dessa vez com mais atenção. Um traço de dor cruzou seu rosto, rápido como relâmpago. — Sim. E apenas isso. Silêncio outra vez. Lívia sorriu, tentando quebrar o clima. — Eu sou Lívia. Acabei de me mudar pra casa azul. — Eu sei. Ela arqueou as sobrancelhas, surpresa. — Santana é pequena — disse ele, como se aquilo explicasse tudo. Montou no cavalo e começou a se afastar. Mas antes de sumir na névoa da chuva, virou o rosto por sobre o ombro. — Cuide bem da sua filha. A estrada muda rápido por aqui. E então foi embora. Lívia ficou ali, imóvel, com o coração batendo alto demais. Sentia-se como uma personagem de romance — e odiava admitir que aquilo a deixara mais viva do que qualquer coisa nos últimos anos. Dentro do carro, Manu ainda dormia. Mas no peito de Lívia, alguma coisa tinha acordado.