Nos dias seguintes ao encontro na chuva, Rafael passou a morar dentro dos pensamentos de Lívia como um sussurro teimoso. Não que ela o tivesse visto de novo. Não que ele tivesse batido à porta ou oferecido qualquer outra ajuda. Mas era como se sua presença ainda estivesse ali, presa nas gotas que desciam pelas janelas, no cheiro da terra molhada, no som dos cascos que ela jurava ouvir à noite.
Lívia tentava afastar a lembrança. Afinal, tinha coisas mais urgentes para se preocupar: organizar a escola de Manu, encontrar algum tipo de trabalho remoto que aceitasse a conexão de internet instável da cidade, descobrir onde se comprava gás de cozinha quando ele acabava no meio do preparo do arroz. Mas bastava o céu se nublar, e a imagem dele surgia. A capa negra, o cavalo, o olhar fundo e cheio de silêncios. Naquela manhã de sábado, o céu estava limpo como uma promessa. Manu acordou cedo, cheia de energia, e pediu para explorar o quintal. Lívia colocou o chapéu de palha na filha e avisou: — Só até a cerca do fundo, tá? Se ouvir qualquer barulho diferente, volta. — Tá bom, mamãe. Prometo! Enquanto limpava o fogão, Lívia podia ouvir a menina cantarolando lá fora, inventando rimas com passarinhos e folhas caídas. De repente, o silêncio. E, logo depois, um grito: — Mamããããe! Tem um cavaloooo! Branco! Enorme! Lívia correu até o quintal, com o coração acelerado. Manu apontava, encantada, para o outro lado da cerca: um cavalo branco pastava calmamente, tão próximo que parecia quase parte da paisagem. Imponente, com o pelo limpo e a crina longa, como um animal saído de um conto de fadas. — Ele me olhou, mamãe. Ele é mágico. Juro! Lívia sorriu, mas seus olhos seguiram mais além. Acima da colina, ao longe, viu a cerca da fazenda. E logo adivinhou: o cavalo era de Rafael. Naquele momento, ela sentiu uma inquietação suave. Era como se tudo ali estivesse conectado por linhas invisíveis — o cavalo branco, a filha encantada, o homem que não sorria. — Vamos, meu amor. Ele deve ter escapado. Não podemos mexer com o que é dos outros. — Mas ele gostou de mim! — insistiu Manu, cruzando os bracinhos com cara de brava. Mais tarde, enquanto pendurava roupas no varal, ouviu o som de um cavalo. Um só. O mesmo ritmo marcado, os cascos ritmados na terra seca. Dessa vez ela não correu até o portão. Ficou ali, com os lençóis balançando ao vento, e o coração na ponta dos dedos. Rafael passou devagar. O chapéu ainda cobrindo parte do rosto, a capa agora dobrada sobre o ombro. Ele não parou. Mas olhou. Um segundo apenas. Um segundo em que os olhos dele encontraram os dela, e não disseram nada — mas disseram tudo. Havia dor ali. E algo mais. Curiosidade, talvez. Medo, com certeza. Mas também uma faísca quase invisível de… interesse? Lívia sentiu um arrepio que não tinha a ver com o vento. No dia seguinte, ao sair para varrer a varanda, encontrou um bilhete preso na grade com um pequeno galho de arruda. “O cavalo chama Sol. Ele tem o hábito de fugir. Pode deixar que ele volta.” Nenhum nome. Nenhuma assinatura. Mas ela sabia de quem era. Ficou parada ali por longos minutos, com o bilhete nas mãos e o coração dançando entre a razão e o devaneio. E, pela primeira vez em muito tempo, Lívia se permitiu pensar… E se não for só mais uma fase de sobrevivência? E se, desta vez, for diferente? ⸻