O bilhete permaneceu sobre a escrivaninha por dias, como uma flor seca guardada num livro antigo. Lívia o lia sem reler, pois a frase já estava gravada na memória. A caligrafia era forte, mas contida, como ele. E o nome do cavalo — Sol — parecia uma ironia delicada vinda de alguém que vivia envolto em sombras.
Naquela tarde, o céu estava claro, mas o ar carregava o frescor de chuva distante. Manu brincava com um caderninho de desenhos na varanda, e Lívia preparava chá de camomila — hábito novo que aprendeu para se acalmar. O cheiro suave das ervas preenchia a cozinha quando ouviu novamente o som familiar dos cascos. Ela não correu. Nem espiou. Apenas ficou parada, como se já soubesse. E sabia. Minutos depois, alguém bateu levemente no portão de madeira. Lívia secou as mãos no avental e foi. Seu coração batia devagar, como se se preparasse para algo sagrado. Quando abriu o portão, ele estava lá — Rafael — com uma expressão tão serena quanto indecifrável. — Sol escapou de novo — disse, quase num sussurro. Ela sorriu, com ternura. — Ele gosta daqui, parece. — Ou talvez ele goste dela — disse, apontando com um leve gesto de cabeça para Manu, que o observava de longe, escondida atrás de uma cadeira. Lívia mordeu o canto do lábio. — Quer entrar? Pode esperar o chá ficar pronto. Ainda tá quente. Rafael hesitou. Por um segundo, ela viu uma batalha nos olhos dele: entre o “sim” que queria escapar e o “não” que ele aprendera a dizer ao mundo. Por fim, assentiu com um leve movimento de cabeça. Sentaram-se na varanda. A luz do fim da tarde tingia tudo de dourado. O silêncio entre eles não era desconfortável. Era denso. Intenso. Como se cada segundo fosse necessário para o que viria a seguir. — Há quanto tempo está aqui? — ele perguntou, sem olhar diretamente. — Uma semana. Mas parece mais. Tem lugares que fazem o tempo andar diferente, né? Ele apenas concordou com um leve som. — Eu precisava sair da cidade. Era muita gente, muita ausência. Muita lembrança que doía — ela continuou, sem saber exatamente por quê. — Alguém te feriu? — ele perguntou, a voz baixa, mas firme. Lívia olhou para ele. E por um instante, Rafael sustentou o olhar. Longamente. — Feriu. E depois sumiu. Me deixou com a melhor parte dele nos braços. Mas nem isso ele quis ver crescer. O silêncio ficou mais espesso. Rafael encostou os cotovelos nos joelhos, abaixando a cabeça, como se absorvesse tudo que ela dizia. Quando levantou o olhar, estava diferente. Não mais fechado, mas… vulnerável. — Eu perdi minha mulher e meu filho num acidente. Ela estava grávida. Era nossa primeira criança. Lívia sentiu o estômago revirar. — Rafael… me desculpa. — Não precisa — ele respondeu, rápido, mas não ríspido — Não tem como consertar o que aconteceu. Eu só… não falo disso. Nunca falo. — Então por que está falando comigo? Ele a olhou de novo. E foi diferente. Os olhos dele tinham uma sombra, mas também um brilho novo. Como se ela tivesse sido a primeira fresta de luz em anos. — Porque você escuta de um jeito que ninguém mais escuta. Lívia sentiu a respiração falhar. O chá nas mãos já estava morno, esquecido. O ar entre eles parecia carregar eletricidade e doçura ao mesmo tempo. Os olhares não fugiam mais. Permaneciam. Trocavam silêncios, segredos, vontades. — Você sente falta dela? — ela perguntou, a voz embargada. — Sinto falta de quem eu era com ela — respondeu ele, com sinceridade brutal — Mas com você… eu não sinto culpa por sorrir. Ela mordeu os lábios, os olhos marejados. E sem saber o que dizer, apenas ficou ali. Presa entre o que sentia e o que não queria sentir tão rápido. Até que ele disse, baixinho: — Tem algo em você… que me acalma. E ao mesmo tempo, me assusta. Lívia se aproximou devagar. Seus joelhos roçaram nos dele. E embora nenhum dos dois ousasse tocar de verdade, o calor entre os corpos dizia mais do que qualquer beijo apressado diria. — Às vezes, o que mais assusta… é aquilo que mais queremos — sussurrou ela, sem pensar. Rafael sorriu. Pela primeira vez, um sorriso completo. E não era bonito. Era… verdadeiro. Ela sorriu de volta. E os dois suspiraram. Ao mesmo tempo. Ali, entre o fim do dia e o começo de qualquer coisa que ainda não sabiam nomear, dois corações machucados se reconheceram no silêncio. ⸻