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Capítulo 5 – Cicatrizes

O bilhete permaneceu sobre a escrivaninha por dias, como uma flor seca guardada num livro antigo. Lívia o lia sem reler, pois a frase já estava gravada na memória. A caligrafia era forte, mas contida, como ele. E o nome do cavalo — Sol — parecia uma ironia delicada vinda de alguém que vivia envolto em sombras.

Naquela tarde, o céu estava claro, mas o ar carregava o frescor de chuva distante. Manu brincava com um caderninho de desenhos na varanda, e Lívia preparava chá de camomila — hábito novo que aprendeu para se acalmar. O cheiro suave das ervas preenchia a cozinha quando ouviu novamente o som familiar dos cascos.

Ela não correu. Nem espiou. Apenas ficou parada, como se já soubesse. E sabia.

Minutos depois, alguém bateu levemente no portão de madeira.

Lívia secou as mãos no avental e foi. Seu coração batia devagar, como se se preparasse para algo sagrado. Quando abriu o portão, ele estava lá — Rafael — com uma expressão tão serena quanto indecifrável.

— Sol escapou de novo — disse, quase num sussurro.

Ela sorriu, com ternura.

— Ele gosta daqui, parece.

— Ou talvez ele goste dela — disse, apontando com um leve gesto de cabeça para Manu, que o observava de longe, escondida atrás de uma cadeira.

Lívia mordeu o canto do lábio.

— Quer entrar? Pode esperar o chá ficar pronto. Ainda tá quente.

Rafael hesitou. Por um segundo, ela viu uma batalha nos olhos dele: entre o “sim” que queria escapar e o “não” que ele aprendera a dizer ao mundo. Por fim, assentiu com um leve movimento de cabeça.

Sentaram-se na varanda. A luz do fim da tarde tingia tudo de dourado. O silêncio entre eles não era desconfortável. Era denso. Intenso. Como se cada segundo fosse necessário para o que viria a seguir.

— Há quanto tempo está aqui? — ele perguntou, sem olhar diretamente.

— Uma semana. Mas parece mais. Tem lugares que fazem o tempo andar diferente, né?

Ele apenas concordou com um leve som.

— Eu precisava sair da cidade. Era muita gente, muita ausência. Muita lembrança que doía — ela continuou, sem saber exatamente por quê.

— Alguém te feriu? — ele perguntou, a voz baixa, mas firme.

Lívia olhou para ele. E por um instante, Rafael sustentou o olhar. Longamente.

— Feriu. E depois sumiu. Me deixou com a melhor parte dele nos braços. Mas nem isso ele quis ver crescer.

O silêncio ficou mais espesso. Rafael encostou os cotovelos nos joelhos, abaixando a cabeça, como se absorvesse tudo que ela dizia. Quando levantou o olhar, estava diferente. Não mais fechado, mas… vulnerável.

— Eu perdi minha mulher e meu filho num acidente. Ela estava grávida. Era nossa primeira criança.

Lívia sentiu o estômago revirar.

— Rafael… me desculpa.

— Não precisa — ele respondeu, rápido, mas não ríspido — Não tem como consertar o que aconteceu. Eu só… não falo disso. Nunca falo.

— Então por que está falando comigo?

Ele a olhou de novo. E foi diferente. Os olhos dele tinham uma sombra, mas também um brilho novo. Como se ela tivesse sido a primeira fresta de luz em anos.

— Porque você escuta de um jeito que ninguém mais escuta.

Lívia sentiu a respiração falhar. O chá nas mãos já estava morno, esquecido. O ar entre eles parecia carregar eletricidade e doçura ao mesmo tempo. Os olhares não fugiam mais. Permaneciam. Trocavam silêncios, segredos, vontades.

— Você sente falta dela? — ela perguntou, a voz embargada.

— Sinto falta de quem eu era com ela — respondeu ele, com sinceridade brutal — Mas com você… eu não sinto culpa por sorrir.

Ela mordeu os lábios, os olhos marejados. E sem saber o que dizer, apenas ficou ali. Presa entre o que sentia e o que não queria sentir tão rápido.

Até que ele disse, baixinho:

— Tem algo em você… que me acalma. E ao mesmo tempo, me assusta.

Lívia se aproximou devagar. Seus joelhos roçaram nos dele. E embora nenhum dos dois ousasse tocar de verdade, o calor entre os corpos dizia mais do que qualquer beijo apressado diria.

— Às vezes, o que mais assusta… é aquilo que mais queremos — sussurrou ela, sem pensar.

Rafael sorriu. Pela primeira vez, um sorriso completo. E não era bonito. Era… verdadeiro.

Ela sorriu de volta. E os dois suspiraram. Ao mesmo tempo.

Ali, entre o fim do dia e o começo de qualquer coisa que ainda não sabiam nomear, dois corações machucados se reconheceram no silêncio.

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