O silêncio dentro do carro parecia mais pesado do que a mala no porta-malas. O rádio chiava uma estação fora do ar, mas Lívia não desligava. Havia algo naquele ruído que combinava com a bagunça dentro dela.
O relógio marcava 5h37 da manhã. O céu ainda estava envolto por uma neblina fina, e a cidade grande dormia enquanto ela, finalmente, partia. Ao lado, no banco traseiro, a filha dormia abraçada ao urso de pelúcia que já perdera uma orelha. Manu não sabia ainda que aquele seria o começo de uma nova vida — ou talvez soubesse, da forma silenciosa que só crianças muito sensíveis sabem. Lívia olhou pelo espelho retrovisor, tentando ver algo da cidade que deixava para trás. Mas tudo que conseguiu ver foi a própria imagem: olhos cansados, cabelos presos de qualquer jeito, e uma expressão que misturava cansaço com esperança. Sete anos. Sete anos tentando se manter de pé por causa de uma filha. Sete anos de promessas não cumpridas, de ausência do pai da criança, de noites em claro equilibrando contas e fraldas. E agora, finalmente, estava indo embora. Para o interior de Minas, para uma cidade que não conhecia, para uma casa que alugou pela internet e só viu em fotos pixeladas. Mas era o que dava para pagar. E, mais do que tudo, era longe. Muito longe dele. A estrada parecia infinita. O céu foi clareando devagar, e a música começou a tocar baixinho no rádio: uma canção antiga que falava de recomeços. Lívia apertou os olhos, tentando conter as lágrimas. Não era hora de chorar. Já chorara demais. Ao parar num posto de gasolina na beira da estrada para tomar um café, recebeu um bom-dia sorridente de uma senhora com avental florido. Aquilo a desarmou. Sorriu de volta. Talvez estivesse mesmo no caminho certo. “Vai pra onde, moça?” perguntou a senhora, enquanto colocava o pão de queijo para esquentar. “Santana do Monte,” respondeu, com um sorriso que tentava disfarçar a incerteza. “Ai que cidade linda! Pequena, tranquila. Mas chove muito essa época… Leva um casaquinho.” Lívia assentiu, agradecida pela gentileza despretensiosa. Já fazia tempo que não era tratada com tanta leveza. De volta ao carro, Manu acordou com os olhos inchados e sussurrou: — A gente já chegou na nossa casa nova, mamãe? — Quase, meu amor — respondeu, esticando a mão para trás e segurando a da filha — Falta só mais um pouquinho. E ali estava ela, prometendo mais uma vez o que nem sabia se podia cumprir: um recomeço. Um lar. Paz. Horas depois, quando finalmente passou pela placa enferrujada que dizia “Bem-vindo a Santana do Monte”, sentiu um arrepio. A cidade era pequenina, com ruas de paralelepípedo e postes antigos. Um coreto na praça, uma igreja no topo do morro, e crianças brincando descalças na rua. Nada parecia ameaçador — pelo contrário, havia uma doçura no ar. Uma promessa. A casa azul era como nas fotos: simples, com varanda de madeira e janelas brancas. O jardim estava malcuidado, e havia poeira nos batentes, mas Lívia já conseguia imaginar flores ali, e a voz de Manu correndo pela varanda. Quando desceu do carro, sentiu o cheiro da terra úmida e ouviu ao longe o canto de um galo. Uma borboleta amarela passou perto de seu rosto e pousou no corrimão da escada. Ela fechou os olhos. Respirou fundo. Estava recomeçando. Do zero. Com medo. Com cicatrizes. Mas estava. E isso já era muito. ⸻