No colégio Montclair, onde as aparências importam mais que verdades, Aurora não está interessada em se enturmar. Com a cabeça sempre nos livros e os fones nos ouvidos, ela planeja sobreviver aos últimos anos escolares sem chamar atenção. Mas tudo muda quando ela presencia um confronto entre Davi — o misterioso aluno novo que tem fama de “encrenca” — e o time de basquete. A partir daí, Aurora é arrastada para um mundo de segredos, lealdades divididas, amizades perigosas... e sentimentos inesperados. Entre beijos roubados, confusões no pátio e juras sussurradas sob o céu noturno, ela descobre que o amor pode nascer nas sombras — e brilhar mais que qualquer estrela.
Ler maisAs segundas-feiras sempre foram o pior tipo de começo.
O despertador tocou às 06h15, como um tapa na cara. Aurora o ignorou por longos três minutos até sua mãe bater na porta do quarto. — Aurora! Você vai se atrasar! Ela murmurou algo entre um "já vou" e um palavrão abafado no travesseiro. Levantou-se com o cabelo emaranhado e o humor enterrado em alguma cova emocional de domingo à noite. Colocou o moletom roxo de sempre, prendeu o fone no ouvido e desceu as escadas em modo zumbi. No caminho até o colégio Montclair, Aurora contou as rachaduras na calçada. Sete. Sempre as mesmas. Era um ritual que lhe dava uma falsa sensação de controle. Entrar no portão do colégio, porém, era como atravessar uma ponte para um mundo que ela nunca quis fazer parte. Montclair tinha de tudo: um pátio imenso, mural motivacional, diretora com voz aguda demais e um grupo seleto de alunos que dominavam os corredores como se fossem donos do lugar. Os "populares", claro. E ela? Ela era só Aurora: a garota dos fones, do caderno rabiscado e da postura invisível. E era assim que ela gostava. Ela se esgueirou até o armário, fingindo que o mundo ao redor não existia. Mas naquele dia, havia algo diferente no ar. Um murmúrio estranho se espalhava pelos corredores. Pessoas parando, olhando, cochichando. Curiosa, Aurora ergueu os olhos. E então o viu. O garoto novo entrou como se estivesse atrasado, mas sem pressa. Carregava uma mochila rasgada com chaveiros de banda e um fone pendurado no pescoço. Os tênis estavam sujos, a jaqueta de couro tinha um rasgo no ombro e havia um curativo no queixo. Ele tinha cara de quem já tinha apanhado da vida — e sobrevivido. Davi. Ela não sabia o nome dele ainda, mas parecia óbvio que seria algo com peso. Um nome que combinasse com os olhos escuros e a expressão de quem não ligava pra ninguém ali dentro. Ele passou por ela como se o corredor fosse só dele. E por um segundo — só um segundo — seus olhos cruzaram os dela. Aurora engoliu em seco. A conexão foi breve. Um instante congelado no tempo. Mas foi o suficiente para ela saber: aquele garoto ia bagunçar tudo. Na terceira aula, a previsão se confirmou. — E então, você pode se apresentar, por favor? — pediu a professora de História, com seu eterno sorriso forçado. O garoto levantou o olhar devagar. Levantou-se como se fosse um castigo e falou, com voz baixa e firme: — Davi Andrade. Acabei de me mudar. É isso. Silêncio. — Bem... obrigada, Davi. Pode se sentar ao lado de... Aurora. Ela congelou. Vários olhares se voltaram pra ela. Aurora sentiu o rosto queimar. "Ótimo", pensou. "Agora sou a garota que vai sentar com o Encrenca." Davi chegou até a carteira ao lado da dela, jogou a mochila no chão e se sentou. Não disse nada. Também não olhou de novo. Apenas se recostou e tirou uma caneta do bolso. A aula continuou, mas Aurora mal conseguiu prestar atenção. Os rabiscos no caderno começaram a ganhar formas sem sentido — espirais, setas, olhos. Era como se a presença dele alterasse o ar ao redor. Na saída, ela o viu cercado por três caras do time de basquete. Eles falavam algo que Aurora não conseguia ouvir, mas o tom era claro: provocação. Davi nem se mexeu. Só mastigava o chiclete com calma, como se aquilo fosse ridículo demais pra responder. Foi aí que Aurora fez algo inesperado. — Ei! Deixa o cara em paz — ela disse, num impulso. Os garotos olharam pra ela, surpresos. — E você, o que tem a ver com isso? — um deles rebateu, rindo. — Nada. Só acho covarde vocês virem em três contra um. Davi virou lentamente o rosto pra ela. E pela primeira vez, sorriu. Não um sorriso de agradecimento — mas um de reconhecimento. Como se dissesse: “Você é diferente.” Os caras desistiram e foram embora rindo. Aurora respirou fundo. Naquele momento, sem entender direito como, ela sentiu que algo na vida dela tinha virado uma chave. Talvez fosse só um garoto novo. Ou talvez fosse o começo do fim da calmaria.O silêncio na casa de Aurora não era incômodo — era cheio de significados.Desde que a primeira edição de O que Resta havia sido lançada, ela passava mais tempo sozinha, como se precisasse digerir tudo aquilo que as palavras de Mathieu haviam remexido dentro dela.Na estante, o livro ocupava um lugar modesto, entre dois volumes antigos de Clarice Lispector.Mas, para Aurora, ele pesava mais que todos os outros juntos.Não porque ainda doía.Mas porque, finalmente, não doía mais.Era como encontrar uma fotografia antiga e perceber que a imagem já não traz saudade, mas gratidão.Na Constela, o novo projeto — “Estações” — começava a tomar forma.Era uma série de coletâneas temáticas, cada uma inspirada em uma estação do ano, reunindo textos curtos, memórias, fragmentos de vidas que nunca virariam romances, mas que mereciam ser ditas.Mariana liderava o editorial da primeira edição: Primavera.Davi, por sua vez, havia assumido a coordenação das oficinas de escrita criativa com jovens de e
Era uma sexta-feira de céu melancólico quando Aurora recebeu a mensagem:*“Boa tarde. Me chamo Clara, tenho 15 anos.Escrevi uma carta para o projeto ‘Cartas que o Tempo Guardou’, mas não tive coragem de mandar.Agora acho que preciso estar onde aquela carta poderia ter sido lida.Posso visitar o Refúgio?”*Aurora releu várias vezes.Não era comum receber pedidos assim — diretos, frágeis, como se a menina tivesse reunido coragem em gotas.Respondeu imediatamente:*“Clara, o Refúgio está de portas abertas.Traga sua carta — ou só o que você quiser compartilhar.”*Clara chegou no sábado, no meio da tarde.Usava um moletom azul com as mangas puxadas até as mãos.Andava devagar, como quem mede o solo antes de confiar nele.E trazia consigo apenas uma mochila pequena e um envelope dobrado, já com vincos de hesitação.Aurora foi recebê-la pessoalmente.— Bem-vinda.— Obrigada. — Clara respondeu sem olhar nos olhos.A casa estava vazia naquele fim de semana.Era como se o universo tivesse re
Quando Aurora voltou ao Brasil, encontrou a sede da Constela diferente.Havia flores novas no jardim.Havia uma fila de caixas de livros recém-chegados da gráfica.Havia vozes animadas nos corredores e reuniões improvisadas nos sofás da recepção.Mas o que mais chamou atenção foi o mural da entrada.Lá, entre fotos e frases que celebravam projetos passados, havia uma folha nova, pendurada por Mariana:*“O crescimento é uma estrada.Mas quem esquece o caminho… vira só mais um endereço.”*Aurora parou, leu, sorriu.E respirou fundo.O sucesso de O que Resta havia virado manchete em jornais nacionais.Matérias elogiavam o “selo independente que emocionou a Europa”, enquanto editoras grandes começavam a enviar propostas de parceria.A Constela estava, finalmente, no radar.— A gente tá recebendo contato de tudo quanto é lado — disse Davi, em uma das reuniões.— Tem gente querendo vender a marca, comprar os direitos de distribuição, transformar nossos livros em séries pra streaming...Auro
As primeiras resenhas internacionais de O que Resta começaram a surgir em blogs literários franceses, espanhóis e canadenses. Ninguém na Constela sabia exatamente como o livro havia cruzado fronteiras tão rápido — talvez fosse o poder silencioso das histórias que falam de amor que nunca se desfaz.Aurora lia uma crítica traduzida no celular, sentada à beira da janela da editora, quando Mariana entrou empolgada.— Aurora... a gente precisa conversar.— Bom ou ruim? — ela perguntou, meio rindo, meio temendo.— Bom. Inacreditável, na verdade.Mariana entregou o tablet com um e-mail aberto. Era de uma agente literária de Lyon.Bonjour,O manuscrito “Ce qui reste” chamou atenção por aqui. Temos leitores franceses e suíços interessados em uma edição bilíngue. Uma possível turnê de divulgação. E... um convite para o Salon du Livre de Paris.Estamos impressionados com a delicadeza editorial da Constela. O livro é um tesouro sensível.Esperamos que aceitem conversar.Avec respect,Claire Desch
Três semanas depois do lançamento de O Que Resta, a Constela recebeu um e-mail com assunto em letras maiúsculas:INTERESSE INTERNACIONAL EM "O QUE RESTA" – URGENTEVeio de uma agente literária de Paris, representando uma editora francesa independente com histórico em traduções de obras latino-americanas.No corpo do e-mail, elogios.No anexo, uma proposta concreta.— Eles querem comprar os direitos internacionais — disse Mariana, depois de traduzir e reler tudo três vezes para ter certeza.— E querem mais: estão perguntando se a Constela tem outros autores com esse mesmo perfil… íntimo, humano, sensível.Aurora demorou para responder.Ela olhava o anexo aberto na tela do computador como se aquilo fosse um bilhete para outra vida.Um tipo de realidade que até então pertencia aos grandes — às editoras que se autodenominavam “plataformas globais”.— E aí? — perguntou Davi, sentado no braço da poltrona dela.— A gente topa?Aurora cruzou os braços e deixou escapar um sorriso cansado.— É
Era uma quarta-feira morna e esquecível — dessas em que o céu parece suspenso por um fio — quando Mariana entrou na sala de Aurora com um envelope nas mãos.— Esse chegou do exterior — disse, com curiosidade.— O selo é francês. E está endereçado… só a você.Aurora franziu a testa.Ela conhecia aquela caligrafia.Mesmo tantos anos depois.Mesmo depois de ter dito a si mesma que esquecer era o melhor caminho.Sentou-se devagar, como se o corpo soubesse o que o coração ainda negava.Abriu o envelope com cuidado.Dentro, um papel fino, perfumado com lavanda — como as cartas que recebia na juventude.E então leu.*“Querida Aurora,Se essa carta chegou até você, então minha covardia perdeu uma batalha.Passaram-se quinze anos desde que eu fui embora.Fui embora de você, da editora, do país…Fui embora de mim.”*Aurora parou.Os dedos tremiam.O nome não estava ali. Mas a alma que escrevia era inconfundível.*“Talvez você me odeie.Talvez tenha me apagado de tudo.Mas houve uma noite em que
Último capítulo