Era pra ser só mais uma segunda-feira.
Aurora repetiu isso várias vezes enquanto escovava os dentes, pegava a mochila e saía de casa com o capuz do moletom puxado até os olhos. Tentava convencer a si mesma de que nada demais tinha acontecido. Que o sábado não tinha mudado nada. Mas tinha. Desde o dia no brechó, algo dentro dela parecia meio fora de lugar. Como quando você encaixa uma peça de quebra-cabeça com força demais e ela quase se encaixa, mas no fundo você sabe que não era o espaço certo. Davi também estava diferente. Ele não evitava mais. Nem provocava do mesmo jeito. Agora, ele observava. Muito. Como se estivesse esperando algo dela. Um sinal, uma palavra, uma quebra no muro. Na hora do intervalo, ele apareceu do nada. — Vem comigo. Ela franziu a testa, mordendo a tampa da caneta. — Você sempre aparece assim, sem contexto? — É o meu charme. Anda logo. Ela se levantou. Helena lançou um olhar fulminante de longe, mas Aurora desviou. Não estava pronta pra mais uma conversa sobre “perigo” ou “você está se envolvendo demais”. Davi a levou até os fundos do colégio, onde havia uma escada enferrujada que levava ao telhado de um dos galpões antigos. Um lugar que ninguém usava. Ninguém, exceto ele. — A gente pode ser expulso por isso, sabia? — disse Aurora, enquanto subia atrás dele. — Se for expulso com você, já vale a pena. Ela bufou, mas não conseguiu esconder o sorriso. No alto, o vento era forte e gelado. Mas o céu estava incrivelmente limpo. Um azul quase exagerado, como em filmes antigos. Aurora sentou ao lado dele, puxando os joelhos contra o peito. — Por que aqui? — Porque é longe de todo mundo — ele respondeu, olhando pro horizonte. — E porque quando eu tô aqui, me sinto... inteiro. Aurora o observou. Ele parecia calmo. Menos armado. — Você se sente quebrado o tempo todo? Ele hesitou, mas respondeu. — Desde que minha irmã morreu, sim. O mundo ao redor dela silenciou. — Davi... — Ninguém fala sobre isso. As pessoas mudam de assunto, se afastam, fingem que não viram a dor. Mas você... você não fugiu. Aurora engoliu em seco. Sentiu as palavras se prenderem na garganta, como se qualquer coisa que dissesse fosse insuficiente. — Eu não sei o que dizer. — Ainda bem. Tô cansado de frases prontas. Ele olhou pra ela então. De verdade. Como quem vê além da pele, além do rótulo, além da menina silenciosa da terceira carteira. — Sabe, às vezes eu acho que você sente as coisas mais do que demonstra. — E você sente mais do que aguenta. Ficaram em silêncio. Dessa vez, um silêncio cheio de peso, mas também de aceitação. — Eu queria ter te conhecido antes — ele disse, baixinho. — Antes do quê? — De eu virar isso. Um caos ambulante. — Talvez eu só tenha chegado na hora certa. Ele estendeu a mão. Apenas deixou ali, entre eles, como um convite sem pressão. Aurora olhou para aquela mão por um segundo longo demais. Então, encaixou a sua. Os dedos dele eram frios, mas a palma era firme. Como se segurá-la fosse um tipo de redenção. — Você sabe que a gente tá se afundando nisso, né? — ela murmurou. — É. Mas talvez cair junto doa menos. Aurora soltou uma risada curta, nervosa. — Isso não é um relacionamento saudável. — A gente ainda nem sabe o que é isso. Mas tá acontecendo. Eles ficaram ali até o sinal tocar, sentados no telhado do galpão, com a cidade aos pés e um sentimento crescendo devagar, como um trovão distante se aproximando. Nem Aurora, nem Davi tinham todas as respostas. Mas agora, estavam caindo juntos. E isso já era alguma coisa.