Na quinta-feira, o céu estava estranho. Não chovia, mas nuvens pesadas cobriam tudo como um cobertor prestes a sufocar o dia. Aurora acordou com a sensação de que o mundo tinha mudado ligeiramente durante a madrugada — como se algo estivesse fora de lugar, mas ninguém mais tivesse percebido ainda.

Ela ficou encarando o teto por tempo demais antes de levantar. Ainda sentia o gosto do chocolate quente e o eco das palavras de Davi no fundo da mente. Ele falava como quem carrega pedras no peito. Mas de algum jeito, havia conforto nisso. Ele não fingia. Não era superficial. Era intenso, sim, mas com uma honestidade quase brutal. E aquilo... a atraía mais do que gostaria de admitir.

Ao chegar na escola, sentiu os olhos da Helena queimando em sua direção. A melhor amiga estava encostada no bebedouro, braços cruzados, cara de interrogatório pronto.

— E aí, fugitiva. Quer me explicar onde você se meteu ontem?

Aurora hesitou. Não queria mentir, mas também não estava pronta pra lidar com aquele julgamento todo.

— Fui tomar um café.

— Com o garoto novo? — Helena ergueu uma sobrancelha. — Porque vi você saindo com ele. E, sinceramente, não sei se isso é genial ou completamente burro.

— Talvez os dois — respondeu Aurora, tentando soar leve.

— Ele tem cara de encrenca. Daquelas sérias.

— Ele também tem nome. Davi.

Helena suspirou, frustrada.

— Eu só não quero que você se machuque. Você sempre se protegeu tanto. Agora, de repente, tá aí, se jogando de cabeça.

— Eu não tô me jogando em lugar nenhum. Foi só um café, Helena.

Mas as palavras soaram vazias até pra ela mesma.

Durante o intervalo, Aurora encontrou Davi no lugar mais improvável: a biblioteca. Ele estava sentado no fundo, encostado contra a parede, com um livro de poesias abertas no colo. Era um exemplar antigo, com páginas amareladas e anotações rabiscadas nas margens.

— Nunca imaginei te ver aqui — disse ela, se aproximando devagar.

— Eu gosto de lugares silenciosos. E cheios de saída.

Ela riu, puxando uma cadeira.

— Você lê poesia?

— Quando preciso lembrar que ainda tenho um coração — respondeu ele, sem levantar os olhos.

— E isso acontece com frequência?

— Menos do que deveria.

Aurora observou-o por alguns segundos. Ele parecia cansado. Não fisicamente, mas de um jeito mais profundo. Como quem já carregou mais peso do que devia por muito tempo.

— Você é sempre assim? — ela perguntou.

— Assim como?

— Com respostas que parecem metade verdade, metade muro emocional.

Ele olhou pra ela, direto, sem sorrir.

— Eu sou do tipo que aprendeu que contar demais pode virar arma contra você. Então sim. Eu sou assim.

Ela assentiu devagar.

— Tudo bem. Eu também não conto tudo.

Davi fechou o livro devagar.

— Mas sabe o que eu percebi ontem?

— O quê?

— Que você também tá se escondendo. Só que o seu esconderijo é mais limpo. Menos barulhento.

Aurora sentiu um leve incômodo, como se ele tivesse invadido um espaço que nem ela mesma entendia direito.

— Talvez eu esteja.

— E por quê?

— Porque é mais fácil ser invisível do que se decepcionar.

Davi assentiu como quem já ouviu aquilo antes. Como quem já viveu.

O silêncio entre eles não era desconfortável. Era denso. Cheio de significados que nenhum dos dois queria nomear ainda.

Ela quebrou o momento primeiro.

— Vamos sair daqui?

— Tipo matar mais aula?

— Não. Tipo... andar. Sem fugir de nada. Só andar.

Ele sorriu.

— Isso parece perigoso.

— Confia. Eu sou ótima em fingir que a gente tem controle das coisas.

Eles saíram da biblioteca juntos, passos sincronizados e olhos que não sabiam se queriam se encarar ou se esconder.

Aurora não sabia onde aquilo ia dar.

Mas pela primeira vez em muito tempo, estava disposta a descobrir.