A quarta-feira amanheceu com cheiro de chuva e expectativa.
Aurora caminhava mais devagar que o normal. Suas mãos estavam enfiadas no bolso da jaqueta jeans desbotada, e sua cabeça, um verdadeiro turbilhão. Desde o encontro estranho — e um tanto intenso — com Davi no dia anterior, nada parecia encaixar no lugar. Ela tinha se defendido do julgamento da melhor amiga, Helena, com um simples “não foi nada”. Mas não foi nada coisa nenhuma. Havia sido alguma coisa. Ela sabia. E ele também sabia. O olhar que trocaram no final do pátio não deixava dúvidas. Ao chegar no colégio, percebeu o sussurro sutil que tomava conta dos corredores. Comentários baixos, olhares laterais, cochichos. As pessoas estavam falando. Sobre ele. Sobre o que havia acontecido. E talvez — só talvez — sobre ela também. Davi estava encostado no parapeito perto da biblioteca, chutando uma pedra imaginária no chão e observando as pessoas como se elas fossem peças de um jogo que ele já tinha perdido o interesse em jogar. Quando Aurora passou por ele, tentou ser discreta. — Ei — disse ele, sem levantar os olhos. Ela parou. Ligeiramente irritada com o fato de que seu corpo tinha obedecido antes da cabeça decidir. — Oi. — Quer dar um tempo dessa escola de hospício e fingir que tem vida lá fora? Ela franziu o cenho. — Tipo... matar aula? — Tipo isso. Aurora olhou ao redor. Era aula de química. Não que ela fosse uma aluna brilhante — mas também não era de sair quebrando regras por impulso. Só que com Davi... as regras pareciam mais flexíveis. Menos importantes. — Só se você me prometer que não vai me sequestrar. — Sem promessas — ele respondeu, sorrindo. — Mas posso te pagar um café. Eles foram até uma cafeteria pequena a duas quadras do colégio. O lugar era apertado, cheirava a pão fresco e a móveis velhos. Aurora escolheu uma mesa no canto, e Davi se jogou na cadeira como se estivesse ali toda semana. — Então — disse ele, mexendo no cappuccino com uma colher — você sempre sai defendendo desconhecidos em situações potencialmente perigosas, ou foi só comigo? Ela riu. — Foi só você mesmo. Não se acostuma. — Pena. Gostei da ideia de ter uma heroína pessoal. — Eu não sou heroína de ninguém. — Bom, não parece uma vilã também. Aurora bebeu um gole de chocolate quente e o encarou. Ele estava diferente fora do ambiente escolar. Menos fechado. Ainda com aquele ar de problema, mas agora um pouco mais... humano. — Você trocou de escola por quê? — ela perguntou, tentando parecer casual. — Briga. A diretora da antiga achou que seria melhor se eu me afastasse “antes que a situação escalasse ainda mais”. Palavras dela. — Você bateu em alguém? — Eu me defendi. E bati depois. Ela arregalou os olhos. Ele deu de ombros. — O cara falou da minha irmã. Passou do limite. Aurora não respondeu. Só olhou pra ele com mais atenção. Não havia orgulho na fala de Davi. Só verdade. E raiva mal resolvida. — Às vezes eu fico cansado de tentar fingir que tudo tá bem — ele continuou. — E aí eu faço merda. Só pra lembrar que ainda sinto alguma coisa. — Isso é bem autodestrutivo. — É. E funciona. Aurora queria dizer que ele estava errado. Que dava pra enfrentar as coisas sem sair quebrando tudo — e a si mesmo. Mas a verdade era que, em algum nível, ela entendia. Ela também se escondia. Não em brigas. Mas no silêncio, nos livros, nas respostas curtas e na ausência de vínculos. Eles ficaram em silêncio por alguns instantes. Mas não era o tipo de silêncio desconfortável. Era como se as palavras tivessem sido suficientes — pelo menos por agora. — A gente é amigo agora? — ele perguntou, sorrindo de canto. — Não sei. Você me sequestrou pra tomar café. Isso parece meio tóxico. — Eu prefiro “intenso”. Ela riu. Talvez eles não fossem amizade ainda. Mas definitivamente não eram mais estranhos.