Aurora nunca foi do tipo que chamava atenção.
Ela se orgulhava disso. Era boa em passar despercebida, em escolher os lugares certos para sentar, em sair antes que alguém dissesse seu nome alto demais. Mas agora… não. Agora havia olhares. Sussurros. Gente dizendo que ela "estava diferente". E tudo por causa de um garoto de jaqueta rasgada e respostas afiadas. Na sexta-feira, as coisas começaram a sair do controle. Davi faltou. Sem aviso. Sem mensagem. Sem aquela provocação discreta nos corredores ou o sorriso de canto no fundo da sala. Aurora percebeu sua ausência na primeira aula. Fingiu que não. Mas percebeu. O dia passou arrastado. Na última aula, enquanto fingia anotar uma fórmula de física, Aurora sentiu o celular vibrar no bolso da jaqueta. Era uma mensagem desconhecida. Número desconhecido: “Tô bem. Não voltei pra cadeia, se é isso que pensou.” Ela sorriu, mesmo sem querer. Aurora: “Você só avisou porque sentiu que eu tava preocupada?” Número desconhecido: “Talvez. Mas também porque sei que você ia fingir que não se importou, e isso me irrita um pouco.” Ela bufou de leve, sem parar de sorrir. Típico Davi: direto, instigante, impossível de ignorar. Aurora: “Por que faltou?” Número desconhecido: “Assunto de família. Coisas quebradas que ninguém conserta.” Aurora leu a resposta duas vezes. Depois, digitou e apagou três mensagens diferentes antes de decidir por: Aurora: “Se quiser conversar, você sabe onde me encontrar.” Número desconhecido: “Você sempre fala como se estivesse num filme indie. Gosto disso.” Ela trancou o celular no armário mental do “não estou sentindo nada, obrigada” e saiu da sala antes que a professora terminasse de dar a lição de casa. Na manhã seguinte, era sábado. E o sábado, para Aurora, sempre foi um território neutro. Ela costumava passar horas no quarto, ouvindo músicas antigas ou desenhando em seu caderno — um lugar seguro onde tudo fazia mais sentido do que o mundo real. Mas naquele sábado, ela estava inquieta. Por volta das 10h, outra mensagem chegou. Davi: “Café no centro hoje? Prometo não sumir dessa vez.” Aurora ficou olhando para a tela. Não respondeu de imediato. A verdade é que não queria dar a ele o poder de saber que ela estava torcendo pra isso acontecer. Aurora: “Me encontra no ponto final do 112. Ao meio-dia. Se você atrasar, vou embora.” Davi: “Você tá mesmo tentando me assustar com pontualidade?” O ponto final do ônibus 112 era meio decadente. Um desses lugares meio esquecidos da cidade, com bancos de concreto rachado e pichações antigas. Mas era também onde Aurora se sentia mais distante de tudo. E naquele sábado, era exatamente isso que ela queria: distância. Davi apareceu às 12h02, fingindo correr como desculpa. — Dois minutos. Não conta como atraso. — Só se você pagar meu chocolate quente depois. — Feito. Caminharam lado a lado, sem dizer muita coisa. O silêncio entre eles era algo que ela ainda estava aprendendo a aceitar — porque ele não vinha com pressão. Com Davi, não era preciso falar o tempo todo. Bastava estar. Depois de algumas quadras, entraram num brechó que Aurora adorava. Lá, entre prateleiras cheias de coisas inúteis, ela se sentia em casa. Davi pegou uma jaqueta verde musgo e a colocou sobre os ombros. — Fico parecendo um mercenário ou um figurante de novela das seis? — Um mercenário charmoso — respondeu ela, rindo. — Você acabou de criar um personagem que eu provavelmente usaria como desculpa pra não me aproximar de ninguém. — Por que você sempre tem que fugir? Ele a encarou, sério. — Porque se eu fico, as pessoas quebram. Ou eu quebro elas. Aurora não desviou o olhar. — Eu não sou de vidro. — Não. Mas parece ser o tipo de pessoa que tenta consertar todo mundo. E eu... não sou um projeto de arte. Ela não sabia o que responder. Não porque discordava, mas porque talvez fosse verdade. Talvez ela tentasse consertar o que é feito de caos. Talvez fosse só uma maneira de fugir da própria bagunça. — Eu não quero te consertar, Davi — ela disse enfim. — Só não quero que você desista antes de tentar. Davi ficou quieto por alguns segundos. Depois, sorriu. Um sorriso torto, cansado, mas real. — Você me assusta mais do que qualquer coisa que eu já encarei. — Ótimo. Eu sou bem melhor que seus demônios. E naquele momento, entre roupas velhas e verdades desconfortáveis, algo mudou. Eles ainda não sabiam o nome do que estava nascendo. Mas sabiam que não dava mais pra fingir que era nada.