Mundo ficciónIniciar sesiónDuas almas quebradas, buscando algum alento... De repente, meus olhos perceberam uma garota andando na BR. Ela usava um vestido bege que ia quase aos seus pés, e um casaco de lã. Seu cabelo solto também era enorme, passando de sua cintura. Passei por ela, meus olhos ainda focados na sua figura quase fantasmagórica pelo retrovisor. Se fosse uma visão noturna, com certeza seria de dar medo. Um pai solteiro dá pouso a uma desconhecida. Levi precisa de ajuda para cuidar da sua filha pequena, e Atalia está desesperada por um canto para morar. O amor pode chegar quando se menos espera, mesmo para pessoas tão devastadas quanto eles.
Leer másAs cartas estão na mesa.
Posso ouvir o som dos passos pesados no assoalho de madeira. A casa inteira range naquele dia frio de inverno. Nos campos adiante, o vento uiva, como se anunciasse um mal presságio. Giro meu rosto em direção à janela de vidro, observando as nuvens escuras ao longe. Eu não sei se vai chover ou nevar. Os dias frios daquela época do ano sempre trazem surpresas. — “Se o homem tomar uma segunda mulher, não poderá privar a primeira de alimento, de roupas e dos direitos conjugais”. Ouço vozes exclamando “amém”. Meu rosto ainda está voltado à janela. Não é que não presto atenção as palavras do profeta Jorge. É apenas que estou preocupada se dará tempo de recolher as vacas e alimentá-las antes que chegue à noite. Eu detesto ter que trabalhar quando o sol já se pôs. A escuridão sempre me causou horror. — Aqui em Êxodo nós vemos como Deus, nosso Senhor, não apenas autorizou que um homem tivesse uma segunda esposa, mas também regularizou isso atrás de sua lei. Entendem? As pessoas acenam. A Igreja da Aurora – como é conhecida nossa comunidade nas montanhas da Serra do Oeste Catarinense — não é uma comunidade muito grande, mas é muito participativa nos cultos do fim de tarde. Posso ver meus irmãos de fé sentados em cadeiras formando um círculo em volta do profeta Jorge. Profeta Jorge está sempre no centro de tudo. Eu imagino se fora daqui há outras pessoas tão importantes quanto ele. As cartas estão na mesa. Volvo meu rosto em direção à mesa próxima. Meus pais entraram na comunidade antes de eu nascer. Minha mãe disse que venderam tudo que tinham e vieram em busca da salvação que o profeta Jorge jurava que conseguiria dar-lhes. Eu realmente não sei se a encontraram. A cada dia me sinto mais perdida. O trabalho aqui era duro. Eu e as demais moças solteiras cuidávamos dos animais e das hortas, enquanto os casados saíam em carros velhos em direção à cidade, para trabalhar fora. Somente os membros casados podiam ter contato com o mundo externo. E só o tinham por conta do dinheiro que, no final do mês, ia para a congregação. A comunidade tinha custos e profeta Jorge precisava suster a todos. As cartas estão na mesa. Com o tempo, os rapazes começaram a diminuir. Alguns foram embora, chamados pelos demônios externos, e outros simplesmente sumiram como se nunca tivessem estado aqui. Os que restaram, se casaram com as moças solteiras antes de completarem dezoito anos. Houve uma grande época de nascimentos femininos. Eu nasci nessa época, o que já me deixava em uma situação desfavorável para me casar. Profeta Jorge disse no culto anterior que uma moça não podia ficar solteira, e que ele estava preocupado com a minha situação, já que eu fui a única a não ser desposada. Posso ver as cartas sobre a mesa. Profeta Jorge jogava cartas porque dizia que Deus se comunicava com ele atrás do baralho. — Minha jovem Atalia — a voz do profeta Jorge me faz encará-lo. Ele segura uma dama de copas e um rei de ouro em seus dedos. — Você já tem dezenove anos, está mais que idade de se casar. Eu pedi a Deus que me dissesse o que fazer, e então Ele me falou... — Ele sorriu, mostrando seus dentes gastos do auge dos seus cinquenta anos. — Deus te concedeu a honra de ser minha esposa. Eu podia ouvir a alegria e o regozijo dos presentes. Minha mãe ergueu as mãos para o céu, como se estivesse sendo a mais bendita de todas as mulheres. Às costas do profeta, vejo sua esposa com o olhar frio, a única além de mim que não está rindo e agradecendo a Deus pela honra. As cartas estão na mesa. Menos a dama de copa e o rei de ouro. Olhei para fora. As nuvens escuras estavam cada vez mais próximas. Perto do curral, podia ver um dos carros antigos estacionado. Eu nunca soube o que era andar neles, nem conhecia qualquer lugar longe da Igreja da Aurora. Mamãe dizia que o mundo lá fora é horrível, cheio de demônios. Mas, de repente, estar em meio ao inferno não pareceu tão horrível quando aceitar ser esposa de Profeta Jorge. ***1 ano depoisMeus passos ecoam pelo assoalho amadeirado. Eu posso sentir o montante de olhares sobre mim. Há vários tipos de olhares, a maioria é curioso, outros são carregados de piedade, e há um em especial que transborda medo.Medo.Profeta Jorge está sentado no banco dos réus. Ele teme minhas palavras porque sabe que eu vou condená-lo. E, vê-lo assim, só me enche de satisfação. Agora ele não é mais um líder que eu temo. Ele é só um homem apavorado, prestes a ser condenado há muitos anos de cadeia. Eu o encaro e ele desvia os olhos, abaixa a cabeça. É só um covarde.— Sra. Atalia — ouço a voz do promotor, enquanto ele aponta uma cadeira diante do juiz. Eu me sento e ele prossegue: — Por favor, sinta-se à vontade para responder todas as nossas perguntas. Caso não queira responder algo, é só dizer que iremos respeitar sua vontade. Sabemos que é um capítulo difícil em sua vida.Posso sentir uns breves flashes de luz. Há câmeras em minha direção, apesar do juiz só ter permitido uma equ
Acordei com o peso da cabeça de Atalia sobre meu peito. Ela está apagada, mas seus cabelos macios brincam contra meus mamilos, enquanto seu corpo inteiro, protegido por uma camisola fina e pelas cobertas, está repousado encostado em mim.Ela é tão doce. Tão gentil. Sou tão apaixonado por ela.As coisas que aconteceram nos últimos dias foram terríveis. Graças a Deus, tudo passou. Agora ela estava segura em meus braços e eu nunca permitiria que nada de mal acontecesse a ela.Sei que ainda teríamos muitos percalços. A ida ao tribunal, a luta para colocar aquele estuprador atrás das grades. O testemunho de Atalia seria fundamental. Mas, ainda assim, nossa vida, juntos, estava só começando e teríamos muitos dias para aproveitarmos a presença um do outro enquanto criávamos nossos filhos.Eu sorrio enquanto Atalia se mexe, em seu sono. Ela suspira pesadamente, enquanto sua pele resvala contra a minha. Sei que está dormindo, mas a ação me deixa instantaneamente saudosos dos nossos breves mom
— Falei com o médico. Os exames saíram, e você não sofreu nenhuma lesão grave — Levi disse, sentando-se na cama do hospital. — Ele vai vir conversar com você em breve.Assenti. Apesar dos ferimentos superficiais, eu sabia que havia outros bem profundos que não seriam encontrados por exames laboratoriais.— Como se sente? — Levi indagou.Sorri, triste.— Meu pai tentou me salvar — contei a ele. — Ele cortou minhas cordas — ergui meus punhos machucados. — E tentou me ajudar a sair.Uma parte de mim estava tão agradecida. Eu nem entendo por quê. Era dever dele me proteger e me amar e ele foi tão relapso com esse dever por tantos anos. Ele não me olhava. Não me protegia. Não impedia que o mal me acontecesse.E ele nem me ajudou por mim. Era só um acaso.— Foram todos presos, incluindo seus pais — Levi me contou. — O corpo e delito vai provar as agressões. Quando a polícia chegou, sua mãe estava preparando chás abortivos...— Sim — assenti. — Eles queriam me forçar a tomar.Levi se curvou
Algumas horas antes.Todos os dias, antes de voltar para casa, eu comprava um mimo para Atalia. Eu sei que é uma coisa idiota a se fazer, mas era uma das maneiras de eu demonstrar a ela o quanto a queria bem, já que não conseguia dizer com palavras.Então, mais uma vez, eu dirigi de volta para casa com um botão de rosa vermelha no banco do lado. Infelizmente, ele ficou completamente esquecido quando, ao estacionar, percebi o Toyota Etios vermelho com calotas cor-de-rosa de Aline parado à entrada.Meu sangue gelou. Eu realmente não esperava ver minha ex-esposa, não quando sentia que estava me recuperando tão bem de um momento tão terrível em minha vida.Entrei na casa, meus olhos procurando por Atalia. Eu a chamei, mas ela não apareceu como de costume. Então, rumei até o quarto de Alice. Percebi minha filha sentada na cama, brincando de boneca com a mãe. Nós dois nos encaramos por alguns segundos, e então eu indaguei:— O que está fazendo aqui?Sinceramente, esperei que ela fosse ficar
A luz do sol arde em minhas vistas. Eu tento abrir meus olhos, lutando desesperadamente por retomar a minha consciência. Eu temo nunca mais acordar. Eu temo permanecer para sempre na escuridão.Minhas mãos estão presas por cordas fortes, daquelas que se usa para amarrar a cabeça dos porcos antes do abate. Meu corpo dói e eu sei que há sangue na minha cabeça porque sinto um gelado e molhado em um canto direito que arde muito.Eu sei onde estou, antes mesmo de vislumbrar o feno um pouco sujo de barro do chão daquele celeiro velho e caindo aos pedaços. Tento recuperar meu fôlego, enquanto a realidade vai me tocando, como mãos geladas e cruéis, e eu sei que é meu fim.De alguma forma, eu sei.Tive a coragem de fugir do Profeta Jorge. À visão de todos ali, eu estava entregue aos demônios. Eu ousei me retirar da presença de Deus e me curvar ao mundo, viver fora dos dogmas da religião.Uma mão forte me ergue do chão, me forçando a sentar. Encaro meu velho pai, que nem sequer tem a ousadia de
Apesar de primeiramente eu ter me enchido de coragem, a verdade me tomou no dia seguinte, quando Levi quis me levar ao médico, e eu soube que fora de casa havia aquele monte de gente me querendo mal. Assim, eu mal consegui chegar à porta. Pedi por tempo, e ele cedeu.E cedeu nos dias seguintes, conforme eu ia me enclausurando mais.Meu mundo está pequeno, e eu me preocupo que estou fazendo o de Alice se tornar também.Naquela tarde de quarta-feira, quando ela me pediu para ir brincar lá fora novamente, eu olhei em todas as direções pela janela, antes de permitir sua saída. Então a segui, minhas mãos tremiam e o medo tomava conta de mim.A comunidade já sabia onde eu estava. Eles viriam atrás de mim ou estavam esperando pacientemente que toda a lavagem cerebral que sofri durante anos fizesse efeito e eu fosse atrás deles?Eu precisava ir até à polícia. Não apenas por mim, mas também pelo filho que eu carregava no ventre. Ainda não tinha prova médica, mas eu sabia que estava grávida.—





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