As cartas estão na mesa.
Posso ouvir o som dos passos pesados no assoalho de madeira. A casa inteira range naquele dia frio de inverno. Nos campos adiante, o vento uiva, como se anunciasse um mal presságio. Giro meu rosto em direção à janela de vidro, observando as nuvens escuras ao longe. Eu não sei se vai chover ou nevar. Os dias frios daquela época do ano sempre trazem surpresas. — “Se o homem tomar uma segunda mulher, não poderá privar a primeira de alimento, de roupas e dos direitos conjugais”. Ouço vozes exclamando “amém”. Meu rosto ainda está voltado à janela. Não é que não presto atenção as palavras do profeta Jorge. É apenas que estou preocupada se dará tempo de recolher as vacas e alimentá-las antes que chegue à noite. Eu detesto ter que trabalhar quando o sol já se pôs. A escuridão sempre me causou horror. — Aqui em Êxodo nós vemos como Deus, nosso Senhor, não apenas autorizou que um homem tivesse uma segunda esposa, mas também regularizou isso atrás de sua lei. Entendem? As pessoas acenam. A Igreja da Aurora – como é conhecida nossa comunidade nas montanhas da Serra do Oeste Catarinense — não é uma comunidade muito grande, mas é muito participativa nos cultos do fim de tarde. Posso ver meus irmãos de fé sentados em cadeiras formando um círculo em volta do profeta Jorge. Profeta Jorge está sempre no centro de tudo. Eu imagino se fora daqui há outras pessoas tão importantes quanto ele. As cartas estão na mesa. Volvo meu rosto em direção à mesa próxima. Meus pais entraram na comunidade antes de eu nascer. Minha mãe disse que venderam tudo que tinham e vieram em busca da salvação que o profeta Jorge jurava que conseguiria dar-lhes. Eu realmente não sei se a encontraram. A cada dia me sinto mais perdida. O trabalho aqui era duro. Eu e as demais moças solteiras cuidávamos dos animais e das hortas, enquanto os casados saíam em carros velhos em direção à cidade, para trabalhar fora. Somente os membros casados podiam ter contato com o mundo externo. E só o tinham por conta do dinheiro que, no final do mês, ia para a congregação. A comunidade tinha custos e profeta Jorge precisava suster a todos. As cartas estão na mesa. Com o tempo, os rapazes começaram a diminuir. Alguns foram embora, chamados pelos demônios externos, e outros simplesmente sumiram como se nunca tivessem estado aqui. Os que restaram, se casaram com as moças solteiras antes de completarem dezoito anos. Houve uma grande época de nascimentos femininos. Eu nasci nessa época, o que já me deixava em uma situação desfavorável para me casar. Profeta Jorge disse no culto anterior que uma moça não podia ficar solteira, e que ele estava preocupado com a minha situação, já que eu fui a única a não ser desposada. Posso ver as cartas sobre a mesa. Profeta Jorge jogava cartas porque dizia que Deus se comunicava com ele atrás do baralho. — Minha jovem Atalia — a voz do profeta Jorge me faz encará-lo. Ele segura uma dama de copas e um rei de ouro em seus dedos. — Você já tem dezenove anos, está mais que idade de se casar. Eu pedi a Deus que me dissesse o que fazer, e então Ele me falou... — Ele sorriu, mostrando seus dentes gastos do auge dos seus cinquenta anos. — Deus te concedeu a honra de ser minha esposa. Eu podia ouvir a alegria e o regozijo dos presentes. Minha mãe ergueu as mãos para o céu, como se estivesse sendo a mais bendita de todas as mulheres. Às costas do profeta, vejo sua esposa com o olhar frio, a única além de mim que não está rindo e agradecendo a Deus pela honra. As cartas estão na mesa. Menos a dama de copa e o rei de ouro. Olhei para fora. As nuvens escuras estavam cada vez mais próximas. Perto do curral, podia ver um dos carros antigos estacionado. Eu nunca soube o que era andar neles, nem conhecia qualquer lugar longe da Igreja da Aurora. Mamãe dizia que o mundo lá fora é horrível, cheio de demônios. Mas, de repente, estar em meio ao inferno não pareceu tão horrível quando aceitar ser esposa de Profeta Jorge. ***