Quando eu tinha onze anos frequentava a pequena escola da comunidade, a fim de aprender a ler e escrever. Era tudo que aprendíamos, depois disso já estávamos aptas para apenas trabalhar. Como a mulher servia apenas para o trabalho doméstico ou serviçal, ela não precisava aprender nada além do A, B, C. Mas, Janaína, a professora de todas nós, uma mulher que se uniu a comunidade há poucos anos, me disse que ensinaria um pouco mais. Eu não sei exatamente o porquê, mas ela insistiu que aprendêssemos matemática, história e geografia. Foi através dela que eu descobri que o mundo era maior do que a nossa comunidade. Ela me contou sobre livros e caixas mágicas que mostravam histórias contadas de amor, chamado televisão. E foi com ela que soube que havia vários homens sábios, além do profeta Jorge.
A justificativa que ela usava para nos manter na escola por mais tempo era que tínhamos dificuldade de aprender a ler, o que não era verdade. Ainda assim, aceitávamos aquela pequena mentirinha porque era tão bom estar ali, com ela, e os livros e cadernos, descobrindo coisas novas. Histórias... Ah, elas são tão boas... Como eu as amo... Janaína foi embora alguns meses depois. Profeta Jorge ficou revoltado, mas disse que quando alguém pertencia ao diabo, e o diabo chamava, a pessoa não resistia a sua voz. Eu tinha muito medo do diabo. Eu ouvia muito falar dele, por ali. O diabo era um monstro com chifres que te levava a queimar para sempre no inferno. Para que entendêssemos bem o que significava, profeta Jorge nos marcou com ferro quente. A dor insuportável fez a maioria de nós desmaiar. Ele disse que fez isso para que soubéssemos o quão horrível seria queimar para sempre. Mas, ainda na época que Janaína estava aqui, profeta Jorge me chamou para sua sala. Queria conversar sobre meu futuro, disse. Eu o segui com minhas inseguranças de quem tem onze anos e não sabe exatamente o que sentir quando alguém tão importante te convida para uma conversa a sós. — Venha aqui, pequena Atalia — ele estava no sofá, e bateu no estofado para que eu me sentasse ao seu lado. Profeta Jorge tinha cheiro de gordura de porco e café preto. Nunca mais comi porco nem tomei café depois dessa tarde. — Você está uma mocinha. E logo precisaremos encontrar um marido para você. Sua mãe conversa sobre isso com você? Neguei. Mamãe nunca falava muito comigo. Sua vida era a comunidade, ela e meu pai quase não me enxergavam. — Vou te mostrar algumas coisas sobre homem e mulher. Para te preparar. Deus quer que você se prepare. Eu nunca entendi direito porque Deus queria que ele me tocasse onde eu fazia xixi. Nem porque ele me mostrou uma parte horrível de si mesmo, aquela coisa grande e dura, e me fez segurá-lo. Quando eu saí da sua sala naquele dia, estava com lágrimas nos olhos e desespero no meu íntimo. Janaína percebeu e foi a única pessoa a me abraçar depois de tudo. Então ela foi embora. Janaína achou melhor estar com o diabo que com Profeta Jorge. Uma parte de mim, depois daquela tarde, a entendeu melhor que nunca. *** Meus pais tinham acabado de dormir. Eu sei porque eles faziam suas orações por horas, e depois faziam sons estranhos, como gemidos, vindos de sua cama do outro lado do quarto. Nós dividíamos o quarto desde que eu nasci, e lembro de na infância ter perguntado se mamãe estava bem depois de ouvi-la gemer, e ela me mandou ficar quieta e não me meter nos assuntos dos adultos. Eu respeitei isso. Então eu sempre ficava em silêncio, os ouvindo rezar ou gemer. Mas, naquela noite, algo seria diferente. Naquela noite, eu preferia ir para o inferno. Me levantei tão logo o ronco ficou audível. Eu havia escondido uma bolsa com roupas e pão embaixo da cama. Então, os peguei e comecei a caminhar para fora da casa, em passos lentos. Sempre havia homens armados do lado de fora. Profeta Jorge dizia que era para nossa segurança, mas uma vez ouvi Janaína dizendo que parecia uma prisão. Eu não sabia o que significava, mas ela me explicou. E desde então eu me sentia presa. Caminhei pela escuridão, tomando cuidado para que os homens não me vissem. Estava frio, e eu tinha medo do escuro. Tinha medo dos demônios que ficavam fora da Igreja da Aurora, mas temia mais ainda aquilo que o Profeta Jorge tinha entre as pernas. Então, eu segui, rumando em direção ao desconhecido. Aos poucos, consegui adentrar a floresta. Podia sentir o frio intenso do inverno me tomando, e me afundei em meu casaco fofo de lã das ovelhas que criávamos. Estava com medo, meus dentes batiam, ansiedade e pavor me tomando. A cada passo, a certeza de que os demônios me atacariam iam me corroendo a alma. Ainda assim, eu não tinha escolha. Então continuei avançando. — Por amor do teu nome, Senhor, perdoa a minha iniquidade, pois é grande — murmurei o salmo, e com ele continuei. O inferno me abraçaria e eu queimaria em chamas dolorosas para sempre. E, ainda assim, eu continuei andando.