Às vezes, a saída mais perigosa é a única que resta. Carolina vive sob o peso de uma dívida que não contraiu e de um ódio que não merece. Criada pelos tios após uma tragédia familiar, ela é forçada a conviver com a hostilidade fria de Célia, cujo ressentimento vai muito além de ciúmes ou preocupações financeiras. Quando a situação atinge seu limite, um caminho inesperado e perigosamente tentador se abre para ela. Uma proposta feita entre copos e luzes baixas promete não apenas aliviar o desespero de sua família, mas também dar a ela a chance de recomeçar longe daquela casa opressora. O preço? Conquistar Christopher Moretti, um herdeiro marcado pela desilusão e pela rebeldia, que desconfia de todos ao seu redor. O que começa como um jogo de interesses rapidamente se transforma em algo mais profundo, enquanto segredos do passado e chantagens do presente ameaçam despedaçar não apenas o plano, mas a própria identidade de Carolina. Em um mundo onde lealdade e traição se confundem, ela precisará descobrir até onde está disposta a ir pela família que ama, e quanto do seu próprio coração está disposta a sacrificar pela liberdade. Uma história intensa sobre as cicatrizes que herdamos, os laços que nos definem e os preços sombrios que pagamos por um novo começo.
Ler maisO som do garfo batendo no prato de porcelana era o único que quebrava o silêncio pesado da sala de jantar. Cada clink soava como um metrônomo marcando a agonia daquela refeição. Carolina mantinha os olhos fixos no seu frango assado, tentando fazer-se menor, invisível.
— Ricardo, você já falou com o gerente do banco? - a voz de Célia cortou o ar, afiada como uma lâmina disfarçada de pergunta.
O tio Ricardo suspirou, passou a mão no rosto cansado. Os olhos dele, antes cheios de luz, agora pareciam dois poços fundos e escuros.
— Falei, Célia. Eles não vão prolongar o empréstimo. Temos até o final do trimestre para… para acertar as coisas.— “Acertar as coisas” — ela repetiu, com um riso amargo e sem humor. — Você quer dizer vender a casa. A casa que da minha família. Tudo por causa de uma sucessão de más escolhas. — Seu olhar, carregado de um veneno familiar, desviou-se de Ricardo e pousou sobre Carolina. — E de gastos inesperados.
Carolina encolheu os ombros. A faculdade. A comida. A roupa. Ela era o “gasto inesperado”. A herança maldita que seus pais, ao morrerem, empurraram para as costas deles: uma criança para criar, um fardo para alimentar, mais uma boca para sustentar num barco que já afundava.
— Célia, por favor — Ricardo suplicou, numa voz tão baixa que quase não era ouvida. — Não é hora disso.
— É sempre a hora! — a tia retrucou, erguendo a voz. — Enquanto você se recusa a encarar a realidade, eu carrego o peso sozinha! Essa menina… — Ela apontou o garfo na direção de Carolina —vai nos levar à falência completa. Assim como os pais irresponsáveis dela nos levaram à beira dela.
Carolina sentiu as palavras como um soco no estômago. Irresponsáveis. Falar assim dos seus pais, que não estavam vivos para se defenderem. Ela engoliu seco, forçando as lágrimas a não virem. Chorar só daria mais munição para Célia.
A refeição terminou naquele silêncio opressivo de sempre. Carolina levantou- se rapidamente e levou seu prato para a pia.
— Vou sair — anunciou, sem olhar para trás. — Trabalho em grupo da faculdade.
Célia soltou um som de desdém. Ricardo apenas assentiu, com um olhar de pena que doía mais do que o ódio da mulher.
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O ar lá fora era frio, mas era um alívio. Carolina caminhou rápido, até que a casa ficou para trás, um vulto sombrio contra o céu noturno. Ela tirou o celular do bolso. A tela estava cheia de notificações.
Caio: Ei, sumida! Tudo bem? Cadê minha musa inspiradora? Preciso de uma opinião sincera sobre uns rascunhos de armadura pro chefe final do novo nível do jogo. Tu é minha crítica favorita!
Marcela: Carol, me salva! Preciso da tua ajuda para decifrar esse texto de relações internacionais da faculdade, não consigo entender nada. Estou confusa demais. Te pago com um sorvete!
Lucas: Carolina, tudo bem? Preciso bater um papo contigo amanhã no estágio sobre a planilha de custos. Aparece na minha sala quando chegar?
Um sorriso triste surgiu em seus lábios. Fora daquela casa, ela existia. Tinha amigos. Caio, seu amigo de infância, que trocara os gibs por tablets de desenho e via ela não como um peso, mas como uma "musa inspiradora". Marcela, sua colega de faculdade espirituosa e leal. E Lucas, seu colega de estágio, inteligente e centrado.
Ela digitou uma resposta para o grupo que tinha com Caio e Marcela.
“Desculpa, gente. A semana foi um caos. Tô a caminho da faculdade, me encontro com vocês em 20 min?”
A resposta foi imediata.
Marcela: Já estou na biblioteca. Vem me salvar da depressão teórica!
Caio: Fechado. Vou levar meus rascunhos. A opinião de uma estrategista internacional sobre um dragão cibernético é vital para o processo criativo!
Era um conforto saber que, não importa o quão ruim o dia fosse, aquelas pessoas estavam lá. Elas eram sua âncora à normalidade. A Carolina que eles conheciam era mais próxima de quem ela realmente era, uma estudante dedicada, uma amiga brincalhona (e crítica de arte fantástica), uma estagiária promissora.
Ela entrou no campus, o coração aliviado ao ver as luzes da biblioteca. Marcela acenou para ela de uma mesa no fundo, cercada por uma pilha de livros. Poucos minutos depois, Caio chegou, com uma pasta cheia de folhas sob o braço e um sorriso largo.
— Salvem-se, meros mortais, o artista chegou! — anunciou ele, em um sussurro exagerado que fez Marcela revirar os olhos, rindo.
— Para de ser besta, Caio — disse Marcela, sem conseguir esconder o sorriso. — Carol, você parece acabada. Tá acontecendo alguma coisa? Fala pra gente.
A pergunta direta quase fez Carolina desmoronar. Marcela sempre falava o que pensava, sem papas na língua.
— Ah, você sabe… a semana foi pesada — Carolina evitou, sentando-se. — Mas logo passa.— Passa nada — Marcela retrucou, franzindo a testa. — Toda semana é a mesma coisa. Essa sua tia…
— Deixa pra lá, Marcela. De verdade — Carolina interrompeu, suavemente. — Me mostra esses rascunhos, Caio. Preciso pensar em outra coisa.
Caio, percebendo a deixa, abriu sua pasta com entusiasmo.
— Olha só! — disse ele, espalhando os desenhos na mesa. — O chefão é um dragão mecânico que surgiu das ruínas de uma cidade ancestral. Preciso de uma opinião de fora da bolha. A armadura dele é demais ou tá muito clichê e exagerada?
Carolina pegou um dos desenhos, estudando os detalhes. Por um momento, a casa, a dívida, a tia Célia… tudo desapareceu. Havia apenas a precisão dos traços em preto intenso, as texturas que Caio construíra com minúsculos riscos paralelos, a criatividade pura daquela mente que ela tanto admirava.
— Tá incrível — ela disse, com um sorriso geunino pela primeira vez naquela noite. — Mas e se você sujar um pouco mais os joelhos? Como se ele tivesse acabado de levantar de uma ruína. E essa joia no peito… acho que poderia brilhar mais, contrastar com a ferrugem.
Caio arregalou os olhos, impressionado.
— Nossa, é verdade! Que ideia genial! Você tem um dom, Carol. devia ter virado artista comigo.— Com o que essa cabeça pensa? — Marcela interveio, puxando o livro de volta. — Ela vai ser a CEO de uma multinacional e vai bancar a gente andando para cima e para baixo coma limosine dela, e eu claro irei trabalhar na mesma empresa ao lado dela. Agora, me salva dessa teoria das relações internacionais, pelo amor de Deus!
Enquanto alternava entre explicar "conceitos complexos de diplomacia" para Marcela e dar palpites sobre designs apocalípticos para Caio, Carolina sentiu o peso nos ombros diminuir um pouco. Aquela era a sua vida real. A outra, naquela casa silenciosa e cheia de rancor, era um pesadelo do qual ela precisava acordar.
Ela não sabia como ainda. Só sabia que precisava encontrar uma saída. Antes que Célia a consumisse por completo, ou antes que a dívida consumisse o tio Ricardo.
O desespero era um sussurro constante em sua mente, um mantra sombrio que ecoava mesmo entre amigos e risadas.
Eu preciso sair daqui. Eu preciso de dinheiro. Eu preciso sumir
O caminho até a sala de Christopher foi como uma marcha fúnebre. Cada clique de seus saltos no piso de mármore ecoava como um tic-tac do seu tempo prestes a se esgotar. Ela se preparou para mais um interrogatório técnico, revirando mentalmente os dados do último relatório.Ao entrar, a surpresa. A sala era ampla, com vista para a cidade, mas era… surpreendentemente despojada para um herdeiro. Livros espalhados, uma guitarra elétrica encostada num canto, um sofá de couro desgastado além da enorme mesa de trabalho. Ele não estava atrás da mesa. Estava encostado na janela, olhando para o horizonte, e se virou quando ela entrou.— Srta. Cortez. Obrigado por vir. — A voz dele estava diferente. Menos cortante, mais contemplativa. —O senhor pediu a análise, senhor Moretti? — ela disse, mantendo a postura profissional, as mãos suadas nas costas. —Deixe a análise por um momento. — Ele fez um gesto vago em direção ao sofá. — Sente-se.Hesitante, Carolina obedeceu, sentando na beirada do móvel,
Os dias seguintes na Moretti Corporation foram um exercício exaustivo de dupla personalidade. Carolina se dividia entre a estagiária dedicada e brilhante que precisava ser – mergulhando em planilhas de análise de mercado com um foco que impressionou até seu supervisor imediato – e a mentirosa vigilante, que calculava cada palavra, cada olhar, cada risada perto de Lucas e Marcela.A presença de Marcela era um furacão de energia e fofoca. Ela abraçou a "incrível sorte" deles com fervor, aparecendo no setor de Carolina pelo menos três vezes ao dia.— Pelo amor de Deus, Carol, você não vai acreditar! — ela irrompeu na sala, fazendo Lucas pular em sua cadeira. — O estagiário do jurídico é um modelo nas horas vagas. Eu disse! Um! Modelo! E ele me seguiu de volta no Instagram!Lucas ergueu uma sobrancelha, digitando sem olhar para o teclado. — Marcela, alguns de nós estamos tentando concentrar para não ser demitidos em uma semana.— Tédio! — ela cantarolou, girando na cadeira de Carolina. —
O celular vibrou sobre a mesa de cabeceira. O nome MELISSA MORETTI iluminou a tela, e um frio percorreu a espinha de Carolina antes mesmo de ela atender.— Sim?— Chegou a hora do próximo passo — a voz de Melissa era suave e impositiva, como um fechamento de negócio. — Sua fachada precisa de solidez, e nada é mais sólido do que o ambiente profissional. Vou transferir seu estágio para as Empresas Moretti.Carolina sentou-se na cama, o coração acelerado. — Transferir? Mas eu já tenho um estágio, na...— Na consultoria do Sr. Mendes, sim. — Melissa cortou, seu tom deixando claro que já havia mapeado cada detalhe da vida da jovem. — Uma empresa pequena, sem expressão internacional. Já cuidei de tudo com sua faculdade e com seu supervisor. Eles entenderam que uma oportunidade na Moretti é irrecusável para uma aluna de Negócios Internacionais. — Uma pausa calculada. — É um movimento estratégico, minha querida. Aqui, você terá acesso. Proximidade. Contexto. É infinitamente mais crível. A par
O táxi deslizou lentamente pelas ruas iluminadas da cidade, e Carolina sentiu o coração bater acelerado contra as costelas, um tambor ritmado de ansiedade e culpa. Na bolsa, o vestido impecável – e absurdamente caro – que Melissa havia enviado parecia pulsar, um artefato de um mundo que não era o seu, lembrando-a do jogo perigoso que estava prestes a começar. O dinheiro adiantado, já destinado a saldar as dívidas mais urgentes, ainda queimava metaforicamente em sua conta, um lembrete gelado do preço de sua escolha. O prédio do evento beneficente era um monumento ao luxo inatingível: vidros brilhantes, escadas de mármore que pareciam absorver a luz, lustres que lançavam padrões dourados sobre convidados impecáveis. Flashs de câmeras disparavam como pequenos relâmpagos, iluminando sorrisos perfeitos e ensaiados. O murmúrio constante de conversas polidas e o tinir de taças de champanhe criavam uma sinfonia de riqueza que, em vez de encantar, a deixava com um nó de inadequação na gargant
A volta para casa foi um borrão. Carolina mal se lembrava de ter se despedido de Marcela e Caio, de ter pegado o ônibus, de ter caminhado sob o céu noturno que parecia mais pesado do que nunca. Na sua mão, o cartão de visita de Melissa Moretti queimava como uma brasa, um contraste gritante com o frio que sentia por dentro.A casa estava escura e silenciosa quando ela entrou. Um alívio, Célia já devia estar dormindo. Mas uma fresta de luz sob a porta do escritório do tio Ricardo indicava que ele ainda estava acordado. Ela se aproximou e ouviu o som abafado de uma conversa telefônica.—… sim, entendemos. Segunda-feira então. Obrigado. — A voz de Ricardo soava cansada, derrotada. Ele desligou o telefone, e um silêncio pesado se seguiu.Carolina empurrou a porta suavemente. O tio estava sentado à escrivaninha, a cabeça apoiada nas mãos. Os papéis espalhados à sua frente pareciam um campo de batalha.— Tio? — ela chamou baixinho.Ele ergueu a cabeça rapidamente, tentando disfarçar a preocu
As lágrimas caíam silenciosas sobre a capa do livro, embaçando o título e manchando. Carolina estava encolhida em um canto remoto da biblioteca da faculdade, tentando abafar os soluços que insistiam em escapar. As palavras da tia Célia ecoavam em sua mente, cortantes e precisas: "Um fardo. Ingrata. Assim como seus pais irresponsáveis." — Carol? Carol, querida, o que foi? A voz de Marcela veio carregada de preocupação. Junto dela, Caio apareceu, sua expressão animada usual substituída por uma careta de verdadeira preocupação ao ver o estado da amiga. — Puta que pariu, quem eu tenho que matar? — Caio disse, se ajoelhando rapidamente ao lado dela. — Foi aquela bruxa da sua tia de novo, não foi? Fala que foi que eu vou lá e encaro ela! — Caio, para de ser dramático — Marcela interveio, sentando-se do outro lado e passando um braço protetor sobre os ombros de Carolina. — Ignora ele, Carol. Mas fala pra gente. O que essa vaca fez agora?
Último capítulo