Elisa sempre soube que o poder corria em seu sangue — mas ser aprendiz de xamã nunca a preparou para o que viria com Kael. Quando o jovem herdeiro e guerreiro chega à vila em busca da ajuda da mãe de Elisa para desfazer um feitiço antigo, tudo parece seguir o curso da tradição. Até que algo dá errado. Muito errado. Forçados a lidar com as consequências de uma magia que saiu do controle, Elisa e Kael se veem entrelaçados por um destino que nenhum dos dois escolheu. Segredos antigos emergem, promessas são testadas e, no coração da floresta, uma força esquecida desperta. Agora, entre desconfianças, poderes incontroláveis e sentimentos que não deveriam existir, os dois precisarão decidir: confiar um no outro... ou deixar que o mundo se quebre ao redor deles.
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Eu não tenho lembranças de onde vim. Nenhum rosto que me espere na memória. Nenhum nome que me pertença além daquele que Mirena me deu: Elisa. Ela dizia que fui deixada à sua porta como um presente da floresta. Enrolada em uma manta antiga, com os olhos bem abertos — como quem já sabia demais para ser apenas um bebê. Cresci entre ervas, chás e silêncios. Na vila, chamavam Mirena de sábia. Ou de bruxa, quando estavam com medo. Para mim, ela sempre foi apenas... casa. Não éramos sangue, mas o destino nos costurou juntas com linhas invisíveis. Eu aprendia mais com o vento do que com palavras. Mais com o olhar de Mirena do que com qualquer lição. Ela dizia que certas meninas nascem para ver o que outras não veem. Eu não entendia o que isso queria dizer. Só escutava. Só sentia. Enquanto outras moças sonhavam com bailes, vestidos e beijos escondidos, eu sonhava com estrelas que sussurrava em idiomas que eu ainda não sabia traduzir. Sempre senti que havia algo me esperando — mas nunca soube o quê. E foi assim que vivi. À margem da aldeia, entre poções, presságios e o som da floresta que, vez ou outra, parecia me chamar pelo nome. Mas o silêncio... o silêncio sempre me contou segredos. Foi numa manhã em que o orvalho demorou demais a evaporar e os pássaros silenciaram antes do sol alcançar as copas. Mirena parou diante da porta com os olhos fechados, o corpo firme como pedra. Eu a observava, sentindo o peso do ar ao nosso redor. — Algo vem. — disse ela, num sussurro que não era medo, mas certeza. Ela não olhou para mim ao falar. Apenas se moveu em direção às prateleiras, separando ervas com os dedos calejados, como quem se prepara para um visitante que ela já conhecia. — O quê? — perguntei, mesmo sabendo que, com Mirena, raramente há respostas diretas. — Não é o quê, Elisa. É quem. — Ela se virou então, olhos fincados nos meus. — E ele muda tudo. Fiquei em silêncio. Era o que fazia de melhor. — Vista-se com o manto azul. — continuou ela. — O que chega até nós carrega coroa... e maldição. A forma como falou me fez gelar por dentro. Não por medo, mas porque... por um instante, senti algo dentro de mim estremecer. Como se uma porta que eu não sabia que existia tivesse se entreaberto. O céu ficou cinza. As folhas dançaram com o vento. E dentro de mim, algo sussurrou. Fraco. Distante. Quase um eco. Mas ainda não consegui entender as palavras. Mirena começou a preparar o chá sem pressa, como se o tempo estivesse nas mãos dela — como sempre esteve. — Há caminhos que se abrem sem que a gente deseje. — ela disse, mexendo a infusão com sua colher de madeira escura. — E há aqueles que só se revelam quando o destino cansa de esperar. Sentei-me à mesa, observando seus movimentos, o som da chaleira ecoando na pequena cabana, abafado pelas paredes de pedra e silêncio. Eu conhecia esse ritual. Mirena só preparava aquele chá quando o mundo à nossa volta estava prestes a mudar. — Ele é filho de um reino — continuou, quase para si mesma. — Mas carrega sombras como se fosse feito delas. — Quem? — perguntei de novo, mesmo sabendo que ela raramente respondia com nomes. — Alguém que ainda não sabe o que procura… mas virá até mim como se já soubesse. E você, menina... — seus olhos finalmente encontraram os meus, duros, profundos — você vai enxergar o que ninguém mais verá. Franzi a testa, incomodada com aquele tom profético. — Eu não sou como você. Não vejo o que vê. Ela riu baixo. Não de deboche — era o riso de quem já viu o tempo dar voltas demais. — Não ainda, Elisa. Mas vai ouvir. E quando isso acontecer... não tente calar os sussurros. Eles sabem mais do que nós. Fiquei quieta. O chá borbulhava, e lá fora o vento ficou mais denso, pesado, como se alguém estivesse chegando montado nas nuvens. Mirena levou a xícara até mim. — Beba. Vai precisar de firmeza. Quando os olhos dele cruzarem os seus, o destino vai reconhecer você. — Destino não vê — murmurei, teimosa. Ela arqueou uma sobrancelha. — Ah, vê sim. E sussurra. Basta estar disposta a escutar. E foi ali, naquela pausa entre as palavras e o primeiro gole de chá... que um arrepio me subiu pela nuca. Algo, ou alguém, se aproximava. E o mundo como eu conhecia, ainda que pequeno e quieto, começava a se dobrar.Kael ficou parado na soleira da porta por um instante que pareceu um desafio silencioso. Seus olhos não desviavam do vestido, do decote, da determinação que eu sabia que ele preferia esconder.— Está pronta para virar alvo? — ele perguntou, a voz baixa, quase um aviso.Eu não respondi. Não precisava. A sensação era clara demais. O baile não seria uma celebração, mas uma arena onde minha presença seria interrogada, analisada, até ameaçada.Quando chegamos ao Salão do Luar, as luzes pareciam mais duras, o ar mais denso. Os convidados circulavam como peças em um tabuleiro invisível, sussurrando sobre alianças e possíveis casamentos.Uma figura se aproximou, um homem de olhos calculistas e sorriso fácil. Apresentou-se como um dos representantes do Duque de Virelle — o mesmo cujo nome Mirena mencionara com uma sombra de advertência.Ele inclinou-se levemente e disse, com uma voz que tentava soar casual:— Um vestido tão azul quanto o céu noturno… raramente se vê algo assim aqui. Você deve
Kael segurou meu pulso com firmeza. Seu toque era firme, mas não cruel. Seus olhos, porém… estavam escuros. Como se alguma lembrança antiga tivesse sido arrancada à força de dentro dele.— Quem era ele? — minha voz saiu mais fraca do que eu gostaria.Kael não respondeu de imediato. Olhou ao redor, como se pudesse ver além das paredes, como se algo invisível ainda estivesse ali, nos observando.— Um dos marcados — disse por fim. — Eles sentem quando algo desperta… e seguem o cheiro como animais. Você é o faro, Elisa. E o que há em você... grita mais alto do que imagina.Olhei para minha mão. O corte já não sangrava tanto, mas ardia. Quase como fogo sob a pele.— Ele nem me tocou.— Não precisa. — Kael fechou os dedos ao redor dos meus. — Quando você abriu o selo no salão, quando me tocou... ativou mais do que os sussurros. Uma linhagem adormecida. Um pacto que antecede o meu nascimento. E o seu.— Pacto? — repeti, confusa. — Isso está em mim?Kael assentiu, devagar.— Está sobre você.
A lua estava alta quando decidi treinar sozinha.Não conseguia dormir. O anúncio do baile ainda ecoava dentro de mim como um presságio — um aviso de que nada estava realmente sob controle. Nem mesmo eu.O salão estava vazio, silencioso, com sombras compridas dançando nas paredes. Peguei o bastão de madeira e comecei a repetir os movimentos que Mirena ensinara. Braço. Ombro. Torção. Passo. E de novo. De novo. Até doer.Foi quando ouvi o som.Não era um ruído alto. Apenas o leve deslocar de ar, como se alguém estivesse respirando mais perto do que devia.— Você está segurando errado.Girei com o bastão em riste, pronta para atacar.Ele segurou minha mão antes que eu pudesse fazer contato. Frio, rápido. Os olhos dele brilharam sob a luz prateada.— Vai quebrar o pulso se insistir assim — disse Kael, soltando minha mão devagar.— Está me espionando agora?— Estou garantindo que esteja viva para o baile.Bufei, afastando-me.— Não sabia que príncipes tinham tempo para brincar de guardiões
Voltei para o quarto com as pernas bambas.Fechei a porta devagar, como se pudesse conter tudo lá fora. Mas era dentro de mim que a guerra acontecia.As palavras de Kael, o toque em meu pulso, o jeito como me olhou...Era como se ele me visse inteira. Como se reconhecesse algo que nem eu entendia.Me sentei na beirada da cama. Respirei fundo. E foi aí que veio o primeiro flash do dia:Um campo escuro. Um trono de pedra. Sangue escorrendo pelos degraus.Uma mulher ajoelhada, gritando sem voz.E Kael… Kael com os olhos vazios, como se tivesse perdido tudo.Como se tivesse perdido… a mim.Ofeguei. Me levantei num pulo.— Basta — sussurrei. — Chega de não entender.Saí do quarto determinada, com os flashes ainda vibrando nas têmporas.Dessa vez, eu não ia esperar que Mirena revelasse aos poucos.Eu ia exigir.Bati na porta dela com mais força que antes.Mirena abriu, como se já me esperasse.— Você viu mais. — Não foi uma pergunta.— Estou vendo demais. E entendo de menos.Ela fez sinal p
Manhã seguinteO sol nasceu sem pedir permissão. Seus raios atravessaram a janela como lâminas douradas, mas meu corpo parecia preso em outro lugar.Eu estava acordada, mas não estava inteira.A mente… não era mais só minha.As imagens começaram como sonhos. Depois, como lembranças presas em vidro trincado. Eu as via, sentia, mas não podia controlá-las.Flashes.Uma cama de pedra. Um anel caindo no chão. Um grito abafado pela neve.Kael. Mais jovem. Com olhos tão aflitos quanto agora.Outro flash.Um salão com paredes escuras. Eu vestia vermelho. Ele usava uma coroa, mas não sorria. As mãos se tocavam por um instante antes que os guardas o levassem. E eu… eu estava chorando.“Por que você me deixou?”Outro.Um campo de flores azuis. Ele me beijava com urgência, como se o mundo estivesse prestes a acabar. E talvez estivesse. Porque naquele instante, o céu começou a escurecer. Uma maldição nascendo. De novo.Minha respiração ficou ofegante. Eu me levantei da cama, os pés cambaleando no
O dia seguinteO sol surgiu tímido por entre as colunas do salão principal, mas nada nele parecia trazer luz de verdade. As palavras de Mirena ecoavam como um segundo coração batendo dentro de mim, desalinhado do meu próprio ritmo. A maldição. A escolha. Kael.Vesti-me sem pensar muito, guiada pela obrigação de estar presente no almoço com as damas e alguns cavalheiros. Era isso que se esperava de mim: aparência. Presença. Cordialidade. Mesmo que por dentro eu estivesse à beira de um colapso.O salão estava arrumado com um luxo contido. O tipo de riqueza que sabia como se manter discreta. As damas já ocupavam seus lugares, risos baixos e olhares afiados. Os cavalheiros também, entre eles… Therren. Sentado mais perto do centro do que deveria.E Kael?Não estava ali. Ainda.— Lady Elisa — chamou uma das mulheres, educadamente, mas com interesse evidente. — Uma jovem tão bonita e bem colocada... já pensou em um casamento?Minha taça parou no ar. Todos ao redor voltaram os olhos para mim.
Último capítulo