Acordei antes do sol.
A sensação de ter sonhado algo importante ainda pesava sobre meus ombros, mesmo que nenhum fragmento tivesse permanecido comigo. Só havia o eco. E o sussurro. "Ele também sangra. Só não aprendeu a mostrar." Repeti as palavras em silêncio, como se quisesse encontrar nelas um significado mais profundo — ou quem sabe, apenas me convencer de que tinham mesmo vindo de mim. Desci para a cozinha da ala das mulheres, onde o aroma de ervas secas e pão recém-feito me acolheu como um velho cobertor. Mirena já estava ali. De costas para mim, mexia algo em uma chaleira de barro suspensa sobre o fogo. Sabia que eu estava ali antes mesmo que eu dissesse uma palavra. Sempre sabia. — Então... — disse ela, sem se virar — O silêncio do castelo não te acalmou, não é? Sentei-me diante dela, puxando os joelhos contra o corpo. — Ele é... inquieto. Como se o ar tivesse olhos. Mirena soltou uma risada seca, quase afetuosa. — Você sempre foi sensível àquilo que não pode ser dito. Agora está ouvindo até o que o destino sussurra. — Não entendo o que ele quer me dizer — confessei. Ela me olhou por cima do ombro. Os olhos dela pareciam mais velhos que o tempo. — O destino não fala com palavras, Elisa. Fala com encontros. Com os desvios. Com o que mexe dentro da gente sem razão aparente. — Você sabia que ele viria. — Sabia que algo vinha. Senti na noite em que as estrelas ficaram inquietas e o vento soprou do sul. — Você acha... — hesitei — Acha que a maldição não é só o que ele contou? Mirena se aproximou, enxugando as mãos num pano de linho. — Ele te disse tudo? — Só que as esposas morrem. Sempre que tentam gerar um herdeiro. Ela assentiu. — E o que você sentiu quando ele disse? — Frio. Mas não medo. Mirena se inclinou, tocando minha mão com firmeza. — Então ouça isso, menina: o que não te dá medo... é o que te atrai. E isso pode ser bênção. Ou pode ser veneno. — Acha que foi alguém da realeza? — Alguém com muito poder... e mais rancor ainda. Não se lança um feitiço assim sem sede de domínio. E não se mantém por tanto tempo sem sangue sendo derramado para sustentá-lo. Fiquei em silêncio. O que quer que estivesse enredado ali, era antigo. E fundo. — Hoje começa o baile — ela disse, mudando de tom. — Ele quer que você observe. Que converse com as moças. Mas preste atenção... ele também estará observando. Principalmente você. — Por quê? Mirena sorriu com os lábios, mas não com os olhos. — Porque você é a única nesse castelo que não o olha com medo... ou com interesse. Engoli em seco. — E isso é bom? — Isso... é perigoso. E logo ela retornou ao seus afazeres. “O silêncio às vezes pesa mais do que mil palavras.” — Elisa A manhã ainda mal havia despertado, mas os corredores do castelo já estavam vivos com passos apressados e vozes baixas. Costureiras, arranjos de flores, talheres trocados de última hora. Todos se moviam como peças de um tabuleiro invisível. Eu só queria um pouco de ar. Caminhei pelos jardins internos, os olhos presos nas esculturas cobertas de musgo. O castelo era antigo. E parecia carregar em suas pedras mais segredos do que o próprio rei. — Gosta de silêncio? — a voz firme veio de trás, arranhando o momento. Virei-me. Kael estava a poucos passos. Sem armadura, mas com a postura de quem a usava por dentro. — Às vezes — respondi. — Ele é mais honesto que as pessoas. Um canto da boca dele se moveu. Um quase sorriso. — Aqui, honestidade é um luxo perigoso. — Então é por isso que prefere ser frio? Ele ergueu uma sobrancelha. Pela primeira vez, pareceu ligeiramente surpreso com minha ousadia. — E você acha que sou frio? — Não precisa ser um feitiço para perceber. Kael caminhou até uma das colunas de pedra, apoiando-se ali com casualidade ensaiada. — Mirena te ensinou a decifrar pessoas assim? — Mirena me ensinou a sentir. O resto... é sobrevivência. Por um segundo, ele não respondeu. Só me olhou — como se quisesse descobrir algo que nem ele sabia procurar. — Eu nunca pedi para nascer príncipe — disse ele, por fim. — E muito menos para carregar maldições antigas nas costas. — Mas carrega. — Carrego. O silêncio entre nós ficou denso. Mas não incômodo. Era o tipo de silêncio que existia entre duas pessoas que sabiam que estavam se medindo, mas não estavam com pressa de vencer. — O baile começa ao anoitecer — ele disse, mudando de assunto. — Vai acompanhar Mirena? — Vou. Ela quer que eu observe. Converse. Mas já sei que tudo o que direi será para agradar ou desagradar alguém. — Você não parece do tipo que agrada por obrigação. — E você não parece do tipo que se importa com o que os outros querem. Ele sorriu, agora de verdade. Mas não durou mais que um segundo. — Talvez seja por isso que a maioria me teme. — Ou talvez... porque você não permite que ninguém o veja de verdade. Kael se afastou da coluna e começou a caminhar de volta. Mas antes de sumir pelo arco de pedra, se virou. — Use algo azul esta noite. Franzi o cenho. — Por quê? — Porque quero ver se alguém nesse castelo tem coragem de ser o que é... em vez do que esperam. E então ele se foi. E eu fiquei ali, com o coração mais rápido do que deveria... e o sussurro ecoando novamente: "Ele também procura respostas. Só não admite as perguntas."