Helena sempre foi a mulher certa no lugar errado. Competente, discreta e dedicada, aprendeu a se calar para sobreviver em um ambiente de trabalho competitivo e em um casamento que há muito deixou de existir. Até conhecer Adriano, o novo gestor do projeto que, sem saber, despertaria nela algo há muito adormecido — o desejo de ser vista, de ser sentida, de existir para além das entregas e das aparências. Adriano também carrega seus fantasmas: um casamento em ruínas, o sonho frustrado de ser pai, e a necessidade constante de provar que ainda é o homem que um dia acreditou ser. Quando seus caminhos se cruzam, nasce uma cumplicidade silenciosa, um vínculo impossível de ser contido — intenso, arriscado e profundamente humano. Sob o olhar vigilante de Artur, o chefe controlista, e a presença marcante de Mariana, a esposa de Adriano, o triângulo se transforma em um jogo psicológico onde cada gesto pode ser interpretado, cada palavra pode destruir. Entre reuniões, viagens e olhares disfarçados, Helena e Adriano são empurrados para um limite em que o amor se confunde com carência, e o desejo, com fuga. Mas até onde é possível ir sem perder a si mesmo? “No Azul dos Seus Olhos” é uma história sobre o peso das escolhas, os limites da paixão e a coragem de enfrentar o próprio vazio. Um romance maduro, denso e real — onde ninguém é totalmente inocente, e toda entrega cobra o seu preço.
Ler maisHelena ajeitou a xícara de café na mesa da copa da empresa. Não era exatamente cedo — o expediente já havia começado há quase uma hora —, mas aquela pausa improvisada era sua tentativa de recuperar o fôlego antes de encarar a pilha de relatórios.
O barulho dos saltos apressados no corredor, as vozes que se sobrepunham nas salas vizinhas e a luz branca do escritório só reforçavam a sensação de desgaste que a acompanhava. Helena estava ali, mas parte dela parecia viver em outra dimensão — talvez no quarto do filho, onde deixara aquele pequeno corpo adormecido, antes de sair às pressas. — Posso? — a voz masculina surgiu suave, quase musical. Ela levantou o olhar. Adriano estava à porta, segurando sua própria xícara. Os olhos dele, claros como água de rio, refletiam uma mistura de calma e algo mais… um quê de mistério que a desconcertava. — Claro — respondeu Helena, disfarçando o incômodo de ter sido surpreendida. Ele se sentou diante dela. Era um homem que transmitia segurança sem arrogância. Gentil, às vezes até ingênuo, como quando se atrapalhava com a colher de açúcar. Mas, em certos momentos, parecia medir cada palavra, como se soubesse muito bem o efeito que causava. — Está difícil hoje? — perguntou, quase como quem adivinha. Helena hesitou. Adriano tinha esse jeito que a desarmava. Ele não era invasivo, mas parecia enxergar além do que ela mostrava. — Nada que já não esteja acostumada — disse, tentando encerrar o assunto. Ele apenas sorriu. Não insistiu, mas o silêncio que se seguiu foi mais revelador do que qualquer insistência. A porta da copa abriu de repente. Clara, a estagiária do setor, entrou apressada, com uma pilha de papéis nas mãos. — Adriano, o diretor pediu que você revise esses contratos antes da reunião das onze. — E então, olhando para Helena: — Ah, e a senhora também, Helena. Ele quer que os dois estejam juntos. Clara saiu tão rápido quanto entrou, deixando no ar uma tensão inesperada. Helena e Adriano se entreolharam. Aquilo significava horas de trabalho lado a lado, em uma sala fechada, mergulhados em documentos… e no que não se podia dizer. Adriano tomou o último gole de café e disse, com um brilho enigmático no olhar: — Então, parece que o nosso dia só está começando. Helena desviou o rosto, mas sentiu o coração acelerar. A reunião de portas fechadas A sala de reuniões estava fria demais para uma manhã de setembro. Helena puxou a manga do blazer, tentando disfarçar o arrepio que subia pelo braço. Na mesa, os contratos se empilhavam como um muro entre ela e Adriano. O diretor Artur Vasques entrou pontualmente, como sempre. Alto, olhar penetrante e voz firme, era o tipo de homem que impunha silêncio apenas por estar presente. Colocou a pasta de couro sobre a mesa, abriu-a com calma e os encarou. — Quero que vocês analisem cada detalhe. Não podemos correr riscos. — Sua voz tinha a frieza de quem não admite falhas. Helena assentiu de imediato, enquanto Adriano manteve o olhar firme no diretor, sem pressa, como se soubesse que a calma também era uma forma de poder. Por quase uma hora, mergulharam nos papéis. Helena lia, grifava, organizava. Adriano, por outro lado, lia devagar, fazia anotações curtas e só falava quando tinha certeza. Quando falava, porém, chamava a atenção até do diretor. — Essa cláusula precisa ser revista. — Apontou uma linha com o dedo, a voz serena, mas cortante. — Se passar assim, teremos problemas sérios no futuro. Artur ergueu as sobrancelhas. Não era comum alguém questionar com tanta segurança. Helena observou em silêncio. Adriano parecia ingênuo em certos momentos, mas, ali, mostrava outra face: estratégica, calculada, quase irresistível. Enquanto o diretor revisava os apontamentos, Helena deixou escapar um suspiro. Adriano virou-se para ela, num gesto quase imperceptível, e murmurou: — Respira. Eu sei que parece muito, mas você sempre dá conta. Helena congelou. Ninguém dizia aquilo para ela. No trabalho, era comum ouvir cobranças, não incentivos. Nos últimos anos, até em casa, as palavras de apoio rarearam. — Eu não costumo dar conta, não sempre — respondeu, mais para si mesma do que para ele. Adriano não retrucou. Apenas a fitou com aqueles olhos claros que a deixavam desconfortável e segura ao mesmo tempo. Foi então que Artur fechou a pasta com força, interrompendo o instante silencioso. — Bom trabalho. Mas quero que os dois fiquem responsáveis por esse contrato até a assinatura. Isso significa que estarão juntos nesse projeto até o fim. As palavras ficaram suspensas no ar. Helena sentiu o coração bater mais rápido. Trabalhar ao lado de Adriano, dia após dia, em reuniões e longas revisões… aquilo poderia ser um desafio maior do que qualquer cláusula de contrato. Quando saíram da sala, Adriano caminhou ao lado dela. — Parece que teremos muito tempo juntos — disse, com aquele meio sorriso que podia ser simples gentileza… ou algo além. Helena desviou o olhar para o corredor cheio de passos e vozes, tentando ignorar o turbilhão que se agitava por dentro. A advogada Naquele fim de tarde, o escritório parecia mais silencioso que de costume. Muitos já haviam saído, mas Helena permanecia na mesa, cercada por anotações. Estava revisando pela terceira vez um parágrafo do contrato, quando ouviu passos firmes ecoando pelo corredor. A porta se abriu sem aviso. — Espero não estar atrapalhando. — A voz feminina era grave, segura. Helena levantou os olhos e se deparou com uma mulher de presença marcante. Lígia Martins, a advogada da empresa, entrou trazendo consigo uma pasta fina e um sorriso que não era exatamente simpático, mas sedutor. Alta, cabelos negros presos em um coque impecável, olhos delineados. Vestia-se com elegância sem esforço — o tipo de mulher que parecia dominar qualquer espaço. — Oi, Lígia — Adriano respondeu, erguendo-se da poltrona ao lado. O tom dele era caloroso, familiar, como quem reencontra uma velha conhecida. Helena sentiu um aperto no estômago. Não sabia explicar se era desconfiança ou apenas um instinto de comparação. — Vim trazer as alterações solicitadas pelo jurídico externo. — Lígia colocou a pasta sobre a mesa, mas os olhos demoraram mais em Adriano do que nos documentos. — Faz tempo que não nos encontramos fora das reuniões. — É verdade. — Ele sorriu de volta, discreto, mas suficiente para que Helena percebesse algo não dito. A advogada então voltou-se para Helena, com polidez ensaiada: — Você deve ser Helena, não é? Já ouvi falar do seu trabalho. Helena assentiu, um pouco surpresa. — Sim, prazer. — Prazer. — Lígia estendeu a mão. Seu aperto era firme, calculado. — Sei que vai ser um desafio, mas pelo que dizem, você é incansável. A palavra soou como elogio, mas Helena percebeu a ponta de condescendência escondida. Enquanto trocavam formalidades, Adriano permanecia em silêncio, observando. Mas quando Lígia recolheu alguns papéis e se aproximou dele, inclinando-se demais para mostrar uma anotação, Helena sentiu algo arder dentro de si. Não era ciúme declarado — ainda não poderia ser —, mas uma inquietação profunda. Quando Lígia saiu, deixando perfume no ar, o silêncio permaneceu. Helena tentou retomar a leitura, mas não conseguiu evitar a pergunta: — Você já conhecia a doutora Lígia de antes? Adriano a fitou por um instante longo demais. Depois respondeu com naturalidade: — Sim. Trabalhamos juntos em um projeto antigo. Ela é muito competente. O jeito como disse “competente” poderia ser apenas profissional, mas no coração de Helena, ecoou de outra forma. Ela baixou os olhos, voltando para os papéis. Mas, pela primeira vez, o texto parecia ilegível.Helena pediu férias quase sem pensar. Só percebeu a urgência da decisão quando assinou o papel e viu o carimbo oficial no canto da folha. Sentiu alívio imediato — como se o simples ato de se afastar fosse também um gesto de sobrevivência. Partiu alguns dias depois, levando o filho consigo, numa mala enxuta, apenas o necessário. O caminho até o interior era longo, mas o movimento da estrada tinha um efeito hipnótico. Ao se aproximar da cidade natal, reconheceu os contornos das colinas, o cheiro de terra molhada que sempre vinha depois das chuvas, o verde intenso dos campos que se estendiam até perder de vista. Respirou fundo. Ali, o ar parecia mais limpo, mais leve. Na casa dos pais, foi recebida com abraços demorados, daqueles que só a família sabe dar. Os irmãos vieram logo em seguida, trazendo risadas, histórias, memórias compartilhadas. O filho corria pelo quintal como se tivesse descoberto um mundo novo. Helena se sentiu inteira de novo. Como se, por alguns dias, pudesse d
Era uma segunda-feira cinzenta quando Adriano foi chamado à sala do chefe. Helena observou de longe, desconfiada do tom sério da convocação. Ele entrou e fechou a porta atrás de si, desaparecendo por longos minutos. Do outro lado, o chefe o recebeu com o costumeiro pragmatismo. — Adriano, precisamos de você em São Paulo por um tempo. O projeto com a filial exige sua presença lá. Adriano arqueou as sobrancelhas. — Por quanto tempo? — Pelo menos algumas semanas. Talvez um mês. Você sabe como funciona: negociação com investidores, ajustes finos. Lígia pode tocar as coisas aqui com minha supervisão. A palavra “Lígia” soou como um lembrete amargo. Adriano respirou fundo, mas assentiu. Não tinha escolha. Quando saiu da sala, Helena o aguardava, fingindo revisar relatórios. Ele parou ao lado dela, os olhos claros mostrando um cansaço diferente. — Preciso te contar uma coisa… — começou. — O chefe me pediu para viajar. Vou ficar fora algumas semanas. Helena sentiu o chão fugir
Era fim de semana, e Helena caminhava pelo corredor silencioso de uma livraria no centro da cidade. Gostava daquele ambiente: o cheiro de papel, a calmaria entre estantes, a sensação de que o tempo ali desacelerava. Era sua pequena fuga, um refúgio que usava sempre que precisava respirar longe das pressões de casa. Trazia consigo o filho, que insistia em folhear livros infantis na seção colorida, enquanto ela se perdia entre romances e biografias. O marido ficara em casa, indiferente, como quase sempre. Enquanto virava as páginas de um exemplar, ouviu uma voz familiar ecoar entre as estantes: — Helena? O coração dela deu um salto. Ao virar-se, encontrou Adriano, segurando dois livros nas mãos, os olhos claros brilhando de surpresa. Ele vestia roupas casuais — jeans e uma camisa clara dobrada nos punhos — e parecia diferente, mais leve do que no ambiente de trabalho. — Adriano… que coincidência — disse ela, tentando disfarçar o nervosismo. Ele sorriu, genuíno, aquele sorriso que
O relógio marcava nove da manhã quando Helena entrou na sala de reuniões. O ambiente estava mais cheio do que de costume. Adriano já estava lá, concentrado em revisar alguns relatórios, e ao lado dele, com um laptop aberto e postura impecável, estava Lígia. O simples contraste entre os dois fez o coração de Helena bater mais rápido. Lígia, sempre elegante, parecia ter sido cuidadosamente escolhida para o papel de sombra. A presença dela era profissional demais para ser casual. Helena sabia: fora uma decisão do chefe. — Bom dia — disse, tentando soar neutra, enquanto sentava à frente. — Bom dia, Helena — respondeu Adriano, com o mesmo tom gentil de sempre. Já Lígia limitou-se a um sorriso breve, daqueles que mais parecem um lembrete de que alguém está sendo observado. Os minutos seguintes correram entre números, planilhas e estratégias. Mas a cada troca de olhares entre Adriano e Helena, havia uma pausa invisível — quase imperceptível, mas que Lígia parecia captar. Seus olhos,
O silêncio de um fim de tarde preenchia a sala quase vazia do escritório. O ar condicionado zumbia constante, abafando o som do trânsito distante. Helena ajeitou os papéis sobre a mesa, mas sua mente vagava para bem longe dali. Desde que ouvira, por comentários soltos nos corredores, que Adriano vinha se reaproximando da ex-mulher, uma inquietação lhe tomava o peito como um aperto invisível. Adriano, de olhos claros como água em movimento, aproximou-se com aquele sorriso gentil que parecia sempre esconder algo. Colocou a pasta sobre a mesa ao lado dela. — Está tudo bem, Helena? — perguntou, em tom baixo, quase cúmplice. Ela ergueu os olhos, surpresa com a pergunta direta. Hesitou, mas respondeu: — Mais ou menos. Ando pensando demais… sobre a vida, escolhas. Ele inclinou a cabeça, curioso. — Escolhas? Helena sorriu sem alegria. — Acho que todo mundo, em algum momento, se pergunta se tomou o caminho certo. Eu… — respirou fundo — às vezes me sinto presa em uma história que não me p
A tarde já se alongava quando Adriano fechou a porta da sala atrás de si. Helena estava organizando alguns relatórios, perdida em números e prazos, quando percebeu a expressão dele: séria, quase sombria, como se carregasse um peso que não cabia dentro do peito. — Helena… você tem um minuto? — a voz dele saiu contida, mas firme. Ela assentiu, pousando a caneta. — Claro. Adriano puxou uma cadeira e se sentou de frente para ela. Ficou em silêncio por alguns segundos, os olhos fixos nas próprias mãos. Helena sentiu o coração disparar: pressentia que o que viria não era trivial. — Eu encontrei a Mariana. — disse, finalmente. O nome pairou no ar como uma sombra. Helena levou alguns segundos para associar: era a ex-mulher, a companheira de vinte anos, a única história de amor que Adriano havia vivido até então. — Ela… procurou você? — Helena perguntou, tentando manter o tom neutro. — Foi por acaso, mas… acabamos conversando. — Adriano respirou fundo. — E eu percebi que, apesar
Último capítulo