O dia seguinte começou com pressa. Reuniões sobrepostas, documentos que pareciam nunca ter fim e, no centro de tudo, o contrato que unia Helena, Adriano e agora também Lígia.
Na sala de reuniões, o clima estava formal. Lígia explicava com firmeza um ponto jurídico, circulando termos no papel com sua caneta dourada. Adriano a ouvia com atenção, mas não parecia inteiramente ali. De tempos em tempos, seu olhar se desviava discretamente para Helena, como se buscasse algo. Helena fingia anotar, mas sentia o peso dessa atenção. Não era explícita, nem mesmo escancarada. Era sutil, quase invisível — mas real. No intervalo, quando Lígia saiu para atender uma ligação no corredor, Adriano se aproximou da mesa onde Helena arrumava os papéis. — Não se preocupe tanto com ela. — Sua voz veio baixa, como um segredo. Helena ergueu os olhos, surpresa. — Como assim? Ele sorriu, mas um sorriso pequeno, íntimo. — Sei que pode parecer que ela domina a sala, mas você… você tem outra força. As palavras a desarmaram. Helena sentiu um calor estranho no rosto, como se tivesse sido vista de um jeito que ninguém mais percebia. — Força? — repetiu, quase sem acreditar. — Sim. Você não tenta impressionar. Só faz o que precisa ser feito. E faz bem. — Os olhos dele brilhavam com sinceridade, não havia ironia. Helena engoliu em seco. Não lembrava da última vez que alguém havia dito algo assim para ela. Antes que respondesse, a porta se abriu novamente. Lígia voltou, firme, carregando consigo o cheiro doce do perfume e a energia de quem gosta de ser notada. — Vamos? — disse, retomando o lugar como se nada tivesse acontecido. Adriano apenas ajeitou os papéis e voltou ao tom profissional. Mas Helena ficou em silêncio, guardando aquelas palavras dentro de si como quem protege uma chama pequena, mas poderosa. O reflexo da amiga No sábado de manhã, Helena encontrou-se com Marina, sua amiga de faculdade, em uma cafeteria discreta no centro da cidade. As duas se viam menos do que gostariam, mas quando se reuniam, era como se o tempo não tivesse passado. Marina chegou com sua energia habitual: riso fácil, cabelo preso em um coque bagunçado e um jeito de observar o mundo como se fosse sempre espectadora crítica. — E então? — perguntou assim que se acomodaram com as xícaras fumegantes. — Você me chamou com uma urgência suspeita. Helena sorriu, mas um sorriso curto. — Eu precisava falar com alguém… alguém que não fosse do trabalho, nem da família. — Ah. — Marina apoiou o queixo nas mãos, curiosa. — Isso tem cara de problema ou de segredo? Helena respirou fundo, girando a colher no café. — Talvez das duas coisas. Houve um silêncio breve, antes de soltar: — Tem um colega novo no trabalho. Quer dizer, não é tão novo assim, mas… temos trabalhado juntos nos últimos dias. Marina ergueu uma sobrancelha. — E? — E… — Helena buscava palavras, — ele é diferente. Ele me olha de um jeito… não sei explicar. É como se enxergasse coisas que ninguém mais vê. Marina deixou escapar um sorriso matreiro. — Hum. E você gosta desse jeito? Helena desviou os olhos. — Eu não sei. Quer dizer… eu não deveria gostar. — O famoso “não deveria” — Marina brincou, mas sua voz carregava seriedade. — Você fala do seu casamento como quem descreve um emprego do qual não pode pedir demissão. Helena suspirou. — É exatamente isso. — E esse colega… como se chama? — Adriano. — O Adriano tem cara de problema? — perguntou Marina, rindo. — Ele tem cara de paz. — A frase escapou de Helena antes que pudesse contê-la. Marina ficou em silêncio por um instante, estudando-a. Depois, inclinou-se sobre a mesa. — Hel, você sempre carregou mais do que devia. Desde a época da sua mãe. Você aprendeu a sobreviver sem pedir ajuda. Talvez seja por isso que, quando alguém oferece cuidado de verdade, você não sabe se assusta ou se se entrega. Helena apertou a xícara entre as mãos. A observação da amiga a atingiu fundo. — Eu só tenho medo de confundir coisas. Medo de não saber mais quem eu sou, o que quero. — O medo é normal. — Marina deu de ombros. — Mas o silêncio… esse sim, é perigoso. As duas ficaram em silêncio por alguns segundos, cada uma mergulhada em seus próprios pensamentos. Quando saíram da cafeteria, o sol brilhava alto, mas Helena sentia-se envolta em nuvens. Adriano, a mensagem, os olhares — tudo parecia ganhar um peso diferente depois das palavras da amiga. Mensagens depois das dez Helena estava sentada na ponta da cama, ainda de roupa, enquanto o filho dormia no quarto ao lado. A casa estava em silêncio, exceto pelo som distante de carros passando na rua. Ao seu lado, o celular vibrou. Ela não esperava mensagem de ninguém. O marido havia dito que chegaria tarde, e mesmo quando estava presente, pouco se comunicavam. A tela iluminou o quarto escuro. Era de Adriano. "Conseguiu descansar hoje?" Helena ficou olhando a frase simples por alguns segundos. O coração acelerou, como se carregasse ali mais do que as quatro palavras sugeriam. Não era uma cobrança, não era uma obrigação. Era cuidado. Algo raro demais em sua rotina. Respondeu devagar: "Ainda não. Estou tentando." A resposta dele veio quase imediata: "Imagino. Você sempre parece carregar o mundo nos ombros." Helena fechou os olhos. Aquilo a atravessou. Por um instante, lembrou-se da infância — da mãe trancada no quarto, os gritos sem sentido, os olhares estranhos dos vizinhos. Aos 12 anos, Helena já cuidava da casa, das contas, de tudo o que a mãe não conseguia sustentar. Carregar o mundo nos ombros… sim, ela sabia bem o que era isso. — Você não sabe de nada — murmurou para si mesma, mas uma lágrima escorreu. Digitou, apagou, digitou de novo. Por fim, escreveu: "Às vezes eu sinto mesmo. Mas tento não deixar transparecer." A resposta de Adriano veio com suavidade, como se soubesse a exata medida das palavras: "Não precisa se esconder o tempo todo. Pelo menos não de todo mundo." Helena mordeu o lábio. Queria perguntar “de quem?”, mas sabia a resposta. Sabia também que estava entrando em um território perigoso. Ainda assim, o peito parecia aquecer só de imaginar que alguém via além das máscaras que usava todos os dias. Colocou o celular de lado, deitou-se ao lado do filho adormecido e, antes de pegar no sono, deixou-se levar por uma lembrança doce: a primeira vez que havia chegado a uma cidade nova, aos 18 anos, sozinha, com uma mala pequena e um coração cheio de medo. A mesma sensação de agora — medo e esperança caminhando juntos.