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Capítulo 3 — O peso da casa

O domingo parecia começar como todos os outros. Helena preparava o café da manhã enquanto o filho, Lucas, corria pela sala com a energia infinita dos cinco anos.

— Mamãe, olha o avião! — Ele levantava o brinquedo acima da cabeça, voando pela casa.

— Já vi, meu amor. — Helena sorriu, mas seus olhos estavam cansados. Colocou pão na torradeira, esquentou o leite e organizou a mesa.

O marido, Rodrigo, apareceu apenas quando o cheiro do café se espalhou pela cozinha. Ainda de pijama, mexendo no celular, sentou-se à mesa sem olhar para ela.

— Você não vai se arrumar? — Helena perguntou, tentando soar neutra.

— Mais tarde. — Ele não levantou os olhos da tela. — Tenho um jogo com os amigos.

Era sempre assim. Ele guardava sua presença para os outros. Com ela, restavam migalhas de atenção. Helena não protestou. Há tempos havia desistido de disputar espaço com o futebol, com o trabalho extra ou com as mensagens trocadas às escondidas.

Uma lembrança amarga voltou sem aviso: o dia em que descobriu a traição, ainda grávida de Lucas. Rodrigo tinha preparado tudo para deixá-la, mas voltou atrás diante da pressão da família dele, que não aceitava a ideia de abandono em plena gestação. O perdão nunca veio de verdade. Apenas o silêncio.

Enquanto Rodrigo ria sozinho olhando o celular, Helena servia o leite para o filho. Observou Lucas beber, o bigode branco se formando no rosto pequeno, e sentiu um aperto de ternura e de solidão ao mesmo tempo.

Lucas era seu refúgio, mas também sua responsabilidade inteira. A família dela estava distante, espalhada, e os irmãos — aqueles que ela crescera cuidando — hoje se apoiavam entre si, mas ainda assim distantes fisicamente. Rodrigo, por outro lado, sempre mantivera proximidade com os dele. Helena se via como uma estrangeira, até mesmo dentro da própria vida.

Depois do café, Rodrigo saiu apressado, deixando apenas um beijo distraído no topo da cabeça do filho. Nem olhou para Helena.

Ela ficou na porta, observando-o afastar-se. Um silêncio pesado tomou conta da casa.

Lucas puxou sua mão. — Mamãe, brinca comigo?

Ela se sentou no chão com ele, espalhando blocos de montar. Enquanto ajudava o filho a construir uma torre colorida, sua mente vagava. Pensava no futuro, no que tinha se tornado e no que ainda podia ser.

E, inevitavelmente, lembrava-se da mensagem de Adriano, das palavras que ecoavam como um bálsamo secreto: “Você não precisa se esconder o tempo todo. Pelo menos não de todo mundo.”

A torre desabou, e Lucas riu alto. Helena riu com ele, mas dentro de si, algo permanecia em pé — uma chama tímida que crescia, mesmo entre as ruínas.

Entre Tarefas e Confidências

O escritório parecia mais silencioso naquela tarde. As pessoas iam e vinham pelos corredores, mas Helena e Adriano estavam concentrados na mesma sala, revisando relatórios lado a lado. A proximidade, inevitável pelo volume de trabalho, criava um clima diferente, uma tensão quase imperceptível, mas que ambos sentiam.

Helena ajeitou uma mecha de cabelo atrás da orelha e comentou, sem olhar diretamente para ele:

— Engraçado como certas rotinas engolem a gente… às vezes sinto que vivo no automático.

Adriano levantou os olhos claros, que pareciam buscar mais do que a superfície das palavras dela.

— Eu sei como é. Vinte anos da minha vida foram assim. Eu e minha ex… desde a adolescência. Eu achava que amor era nunca questionar, nunca mudar. Mas de repente, quando tudo terminou, percebi que eu nem sabia mais quem eu era sozinho.

Helena o encarou por um instante, tocada pela sinceridade.

— Deve ter sido difícil.

— Foi. — Ele respirou fundo. — Mas, de certa forma, libertador também. Hoje sinto que posso me redescobrir. Só que, claro, existe a solidão. Você se acostuma a dividir a vida com alguém, e quando a casa fica vazia… ecoa.

O silêncio que se seguiu foi interrompido pelo tilintar dos dedos de Helena sobre o teclado. Ela pensava em sua própria casa: um marido distante, um filho que exigia toda a sua energia, e aquele vazio que não se preenchia mais.

— Acho que entendo, Adriano. — ela disse, baixinho. — O meu casamento também… não é o que parece. Às vezes penso que só continuo porque não quero que meu filho cresça sem estabilidade.

Ele franziu o cenho, atento.

— Isso é pesado de carregar sozinha, Helena.

Ela deu um sorriso frágil, como quem pede desculpa por expor demais.

— Não costumo falar disso. Mas você me parece alguém que escuta de verdade.

— Eu escuto porque também preciso ser escutado. — respondeu ele, com suavidade. — E talvez seja isso que falta nas nossas vidas: alguém que realmente ouça.

As palavras ficaram suspensas no ar, como se tivessem dito mais do que o permitido.

Clara, a estagiária, entrou na sala apressada, trazendo documentos para assinatura. A presença inesperada quebrou a tensão, mas, quando ficaram sozinhos novamente, Helena e Adriano trocaram um olhar breve — intenso o suficiente para dizer que a conversa ainda não havia terminado.

Helena voltou ao relatório, mas a mente já estava distante. Pensava no quanto era raro sentir-se compreendida. Desde que deixara sua família aos 18 anos, aprendera a se virar sozinha. A mãe, perdida nas crises da doença, não podia estar sempre presente; os irmãos seguiram suas próprias vidas. O marido, que deveria ser porto seguro, transformara-se em fonte de mágoa. E ali, ao lado de Adriano, ela experimentava uma sensação esquecida: a de partilhar.

Ele, por sua vez, observava discretamente o jeito dela franzir a testa ao concentrar-se, e reconhecia uma força que o impressionava. Percebia que aquela mulher, aparentemente contida, escondia dentro de si um oceano de histórias, de dores e de resistências.

— Sabe, Helena… — disse ele, rompendo novamente o silêncio — às vezes eu penso que a vida sempre dá uma segunda chance. Só precisamos ter coragem de enxergar.

Ela sentiu um arrepio, como se aquelas palavras fossem dirigidas não apenas ao acaso, mas diretamente a ela.

A campainha do celular tocou, trazendo-a de volta ao presente: era uma mensagem do marido, seca e prática, lembrando de buscar o filho na escola. Helena suspirou, desligou a tela e recolheu os papéis.

Adriano percebeu a mudança súbita em seu semblante, mas não insistiu. Apenas lhe ofereceu um sorriso compreensivo, daqueles que dizem mais que mil frases.

E, naquele gesto silencioso, ambos entenderam que estavam caminhando para um território do qual seria difícil retornar.

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