A reunião havia se estendido mais do que o previsto, e Helena mal conseguia disfarçar a inquietação. O celular vibrava na bolsa, lembrando-a da rotina implacável: o filho precisava ser buscado na escola em poucos minutos. O marido, como de costume, não se disponibilizara.
Enquanto recolhia os papéis apressadamente, Adriano percebeu sua tensão. — Você está com pressa? — perguntou, a voz calma contrastando com o ritmo acelerado dos gestos dela. — Sim… tenho que buscar o Lucas. Não gosto de deixá-lo esperando, e o trânsito a essa hora… — ela deixou a frase no ar, os olhos já cansados pela antecipação da corrida contra o tempo. Adriano se levantou e, com naturalidade, ofereceu: — Eu te levo. Estou de carro e passo exatamente por aquela região. Helena hesitou por um instante. Estava acostumada a resolver tudo sozinha. Aceitar ajuda parecia um luxo, ou até um risco. Mas os olhos azuis dele, transparentes, transmitiam uma confiança difícil de recusar. — Tem certeza que não é incômodo? — Nenhum. Vai ser bom ter companhia no caminho. No carro, o silêncio inicial foi preenchido pelo som baixo do rádio. Helena ajeitou a bolsa no colo, sem saber como começar uma conversa fora do ambiente seguro do trabalho. Mas Adriano quebrou a barreira com uma pergunta simples: — O Lucas gosta de esportes? Ela sorriu, aliviada com a leveza. — Muito. Está numa fase de chuteiras e bolas de futebol. Vive pedindo para jogar no parque. Acho bonito ver como ele se entusiasma, mesmo com pouca idade. Adriano assentiu. — As crianças têm essa capacidade de se entregar por inteiro ao que gostam. Acho que é isso que perdemos quando crescemos: a pureza da paixão. Helena se surpreendeu com a frase. Havia nele um olhar filosófico, quase poético, que contrastava com a imagem pragmática de executivo. — Talvez seja por isso que eu admiro tanto meu filho. Mesmo nos dias difíceis, ele me lembra que ainda existe beleza. O carro avançava pelas ruas iluminadas, e a conversa fluía com naturalidade. Helena falou um pouco da infância marcada pela doença da mãe, e de como aprendera cedo a ser independente. Adriano ouviu com atenção genuína, sem interromper, apenas deixando espaço para que ela se sentisse acolhida. Quando foi a vez dele, contou dos primeiros anos de casamento, da sensação de estar preso a uma vida que já não reconhecia como sua, e de como ainda se sentia um estranho dentro da própria casa vazia. Havia algo terapêutico naquele compartilhamento. Como se cada palavra criasse uma ponte invisível entre eles. Ao chegarem à escola, Helena agradeceu a carona. Antes de descer, porém, ficou alguns segundos olhando-o em silêncio. — Obrigada… não apenas pela carona, mas por ouvir. Faz tempo que não me sinto tão… leve. Adriano devolveu o olhar, intenso, mas gentil. — Eu também. Lucas surgiu correndo do portão, e Helena se apressou para abraçá-lo. Adriano observou a cena de dentro do carro, sentindo algo inexplicável apertar-lhe o peito: uma mistura de ternura e desejo de estar mais presente na vida daquela mulher e daquele menino. Enquanto ela caminhava de mãos dadas com o filho, virou-se discretamente para lançar-lhe um último olhar. Não havia palavras, mas ambos sabiam que algo mudara. Era apenas uma carona, mas também era um passo além da linha invisível que separava o trabalho da vida. Sonhos e Confidências A noite caía pesada sobre a cidade quando Helena deitou-se ao lado do marido, que já dormia virado para o outro lado da cama. A rotina fria entre eles transformara aquele espaço em um território silencioso, quase estranho. Helena fechou os olhos, mas a mente insistia em viajar para outro lugar — para outro homem. Desde a carona com Adriano, sua presença parecia ter se infiltrado em cada fresta dos pensamentos dela. Os olhos azuis, intensos e serenos, reapareciam como um reflexo em qualquer momento de distração. O modo como ele a ouvia, com uma atenção rara, despertava nela algo que há muito estava adormecido: a sensação de ser vista. Naquela noite, o sono trouxe imagens vívidas. Ela sonhou com Adriano em uma sala vazia do escritório. No sonho, estavam próximos demais. Helena lembrava-se do calor da pele dele, do cheiro discreto de colônia, e, sobretudo, do instante em que os rostos se aproximaram até quase se tocarem. O beijo não aconteceu de fato, mas o arrepio da iminência a fez acordar com o coração acelerado e as mãos suadas. Virou-se para o marido, adormecido, indiferente, e sentiu um misto de culpa e desejo. Era como se o sonho tivesse deixado uma marca real, um gosto invisível nos lábios. No dia seguinte, encontrou Adriano cedo no trabalho. Ele estava debruçado sobre alguns papéis, concentrado, mas ergueu o olhar assim que ela entrou. — Bom dia, Helena. Dormiu bem? — perguntou, como quem não sabe que a pergunta, para ela, carregava camadas secretas. Ela engoliu em seco antes de responder. — Dormi… mais ou menos. A manhã seguiu com tarefas comuns, mas Helena sentia cada gesto, cada troca de palavras, como se estivessem envolvidos por um campo magnético. Evitava olhar diretamente para ele, com medo de que seu olhar traísse os sonhos da noite anterior. Na hora do café, acabaram sozinhos na pequena copa do andar. Adriano preparava duas xícaras e, sem pedir, ofereceu uma a ela. — Você anda parecendo cansada — disse, em tom suave, quase íntimo. — Está tudo bem? Helena hesitou. A vontade de desabafar crescia, mas o receio de abrir demais a deixava inquieta. — Acho que ando pensando demais, só isso. Adriano segurou a xícara por um instante antes de levar o café à boca. — Pensar demais pode ser perigoso. — Seus olhos se fixaram nos dela, firmes, como se quisessem decifrar segredos. — Às vezes, é melhor sentir. A frase atravessou Helena como um sussurro proibido. Sentir. Era exatamente o que vinha evitando admitir. O corpo dela reagiu com um arrepio discreto, que ela tentou disfarçar com um gole rápido de café. Voltaram à sala de reuniões para continuar um relatório importante. Trabalhar lado a lado, tão próximos, só intensificava a tensão. As mãos quase se tocaram quando ambos pegaram a mesma caneta. Por reflexo, recuaram, mas trocaram um olhar rápido, carregado de um entendimento silencioso. A tarde avançava, e o clima entre eles parecia escapar ao controle. Entre números e páginas de contrato, surgiam pequenas confidências, como se cada um oferecesse ao outro pedaços de sua intimidade. — Às vezes me pergunto — começou Adriano, olhando para a janela — se não passei metade da vida fingindo ser alguém que esperavam que eu fosse. Helena sentiu a frase reverberar dentro dela. — Eu também. — respondeu, quase num sussurro. — Sempre tentando cumprir papéis, agradar, ser forte… mas por dentro… Não concluiu. Adriano a encarava de um jeito que dispensava palavras. O silêncio que se seguiu não era desconfortável; era denso, como se carregasse o peso de tudo que ainda não ousavam dizer. Helena desviou os olhos, mas a imagem dele permanecia grudada em sua mente. Naquela noite, novamente, os sonhos vieram. Desta vez, mais intensos. Sonhou com Adriano a segurando pela cintura, os lábios finalmente encontrando os dela. O beijo, quente e urgente, a fez despertar com um nó na garganta e uma sensação de falta impossível de ignorar. O dia seguinte trouxe um dilema: evitá-lo para sufocar aquela chama, ou se deixar aproximar ainda mais, mesmo sabendo dos riscos. Ao encontrá-lo no corredor, Helena percebeu que não havia escolha. O coração bateu mais rápido, e quando os olhos azuis dele encontraram os dela, entendeu que já estavam além do ponto de retorno.