Miguel Brandão já foi um nome aclamado. Escritor premiado, presença constante nos círculos mais prestigiados da literatura, era o tipo de homem que brilhava em eventos e manchetes, enquanto sua vida íntima ruía silenciosamente sob o peso das exigências e do ego. Mas quando um acidente brutal o lança em coma por dois anos, tudo aquilo que ele conhecia: Fama, prestígio, família, desaparece como tinta em água. Ao despertar em uma UTI, entre máquinas e vozes estranhas, Miguel se depara com um vazio que nenhum livro poderia prever. Isadora, sua esposa, morreu em um incêndio. Sua filha, Brenda, agora com quatro anos, quase não o reconhece. E aqueles que o rodeavam nos tempos de glória: Amigos, família, parceiros, desapareceram sem deixar rastros, como se o tivessem enterrado em vida. A única que ficou foi Clara. Enfermeira dedicada, silenciosa, resistente, Clara não apenas o manteve vivo com cuidados e presença. Foi ela quem criou Brenda, cumprindo a promessa feita a Isadora nos instantes finais. Tornou-se mãe sem ter parido. Guardiã de um lar que nunca foi o seu. E, sem perceber, apaixonou-se por um homem em ruínas. Agora, Clara e Miguel caminham por um campo de escombros emocionais: Luto, culpa, amor não dito. Miguel precisa se reconstruir, mas será capaz de aceitar um amor que nasceu da tragédia? E Clara conseguirá viver esse sentimento sem trair a memória da mulher que tanto amava? O que nasce quando tudo foi perdido? É possível amar alguém que é um estranho até para si mesmo? E se, para seguir em frente, for preciso desafiar o passado?
Leer másO Primeiro Respiro
O som que me acorda não é um som humano. É um apito contínuo e metálico, acompanhado por um sussurro eletrônico que sobe e desce como ondas presas dentro de uma concha. Abro os olhos, ouço vozes abafadas, passos apressados, o estalar de luvas de látex.
A luz branca da UTI corta minha vista.
Tudo cheira a antisséptico, frio e distante, como se o mundo inteiro tivesse sido mergulhado em álcool. Estou deitado. Um tubo invade minha garganta.
Não me lembro de ter escolhido respirar assim. Tentam me virar com cuidado, sinto as mãos firmes sob os ombros, cordões e fios deslizando sobre minha pele fria.
Meu corpo parece não pertencer a mim.
Tento levantar o braço, mas os músculos respondem como borracha molhada.
O coração b**e, mas cada batida parece trabalho pesado. O dreno de ar ronca perto da minha orelha.
Uma enfermeira uniforme azul-escuro, máscara ajustada examina o monitor.
Vejo o crachá: “Clara S. Almeida”. O nome produz uma fagulha escondida na minha mente, mas não sei por quê.
Ela se inclina e pressiona algo no respirador. Sua voz é baixa, profissional, mas sinto calidez na entonação.
— Pressão estabilizando. SatO₂ em 95%. Bom sinal. Outro profissional, talvez o intensivista, responde sem olhar para mim:
— Substituam a infusão de noradrenalina. Ele está saindo da sedação; ajustem a dose. Saindo.
Eu estive preso em alguma névoa? Tento lembrar.
Há buracos escuros, memórias em dissolução:
Um volante entre meus dedos, chuva nos vidros, o clarão dos faróis contrários.
O impacto é só um lampejo, depois, nada.
Ela encontra meus olhos. Eles devem estar amedrontados, porque ela suaviza o olhar por cima da máscara:
— Miguel, você acordou! Eu sou a Clara. Você vai sentir desconforto, mas estamos aqui.
Quero perguntar onde estou, quanto tempo dormi, onde está Isadora, onde está minha menina.
Mas o tubo me silencia.
A garganta queima!
Minhas mãos pousam pesadas como pedra nos lençóis estéreis.
Ela pressiona meus dedos de leve, sinaliza que compreende.
Um relógio digital na parede marca 04:12. Ignoro a data.
O vidro à frente exibe o reflexo pálido de um homem barbudo, abatido, pele colada aos ossos. Sou eu.
Sinto um tremor, não de frio, mas de pavor existencial:
E se tudo o que me definia tiver ficado preso em algum ponto da estrada antes do choque?
Código azul! alguém grita em outro leito. Médicos avançam como enxame. Seringas trocam de mãos, bomba de infusão apita. O som do desfibrilador estoura no corredor invisível.
A UTI não dorme. Ela respira pelas máquinas, vive de adrenalina!
Minha cama é afastada levemente enquanto reorganizam cabos. Uma fisioterapeuta ajusta meu membro inferior com movimentos controlados, prevenindo contraturas.
Mensura o grau de espasticidade e anota algo. Sinto-me reduzido a estatísticas, mas aqueles toques gentis seguram minha alma que escorrega.
— Vamos começar os estímulos sensoriais. Diz Clara, erguendo uma fotografia laminada diante de mim.
Reconheço meus próprios traços, mais jovem, sorrindo ao lado de Isadora, seus cabelos de cobre soltos, olhos cor de mel inflamando a tarde.
Entre nós, um bebê de bochechas gordinhas vestindo macacão azul: Bernardo.
O peito trava num espasmo de saudade que nem o tubo consegue conter. Lágrimas ardem, mas mal escorrem. Clara percebe.
Sua mão quente enxuga o canto de meu olho com gaze estéril.
— Eles te amam, Miguel. Volta devagar. Eu prometo cuidar dessa ponte até você atravessar.
Quero berrar perguntas:
Por que ela fala no presente?
Onde estão?
A foto está desgastada no canto, há quanto tempo foi impressa?
O ventilador sibila, marcando cada respiração que ainda não domino.
As luzes se apagam parcialmente às 05:00. Horário de repouso relativo.
Clara confere os parâmetros mais uma vez, depois se senta perto, digitando algo no prontuário eletrônico.
Pelo vidro, vejo a alvorada tingir de púrpura o corredor. O mundo lá fora existe sem mim há quanto tempo?
Fecho os olhos de novo, não para dormir, mas para impedir que a dor me rasgue.
Deixo que o apito do monitor substitua minha antiga cadência de teclas, como se cada beep fosse uma palavra que minha consciência tenta reconstruir num romance que talvez ninguém queira ler.
A madrugada termina comigo suspenso entre a vida biológica e a memória em r
uínas.
Mas eu respiro. Eu estou aqui!
O primeiro respiro não é de ar:
É de espanto.
Entre o Medo e o AmorAs semanas que se seguem à visita da minha família são estranhamente tranquilas. Como se o confronto tivesse limpado o ar, afastado uma sombra que pairava sobre a casa desde o dia em que voltei. Mas a calma, percebo, é frágil. Há algo latente em mim, como se a presença constante de Clara despertasse não só gratidão, mas um sentimento que me assusta.Eu a observo de longe enquanto ela penteia os cabelos de Brenda antes da escola. Ou enquanto limpa as bordas da janela com um pano úmido, cantarolando uma música antiga. Vejo seus olhos se acenderem quando ela sorri. E sinto um calor estranho no peito. Um calor que não é familiar, estranho. Que não tem nome.— Você está bem? Ela pergunta, ao me encontrar parado no corredor, encarando o vazio com as muletas encostadas no batente.— Só cansado. Respondo.Mas é mentira. Não estou cansado. Estou com medo.O medo de amar de novo é diferente de qualquer outro. Ele não vem com gritos ou tempestades. Ele se instala com
A manhã começou tranquila. Brenda brincava com blocos no tapete da sala, Clara preparava café e eu tentava escrever mais uma página do caderno azul. As palavras fluíam lentamente, mas vinham. Pela primeira vez em muito tempo, não senti necessidade de perfeição. Escrever para Brenda não exigia grandes viradas, nem metáforas mirabolantes. Apenas verdade.O som da campainha interrompeu o ritmo suave da casa. Clara levantou para atender. Ouvi a porta abrir, vozes abafadas e, em seguida, um silêncio estranho. Aquele tipo de silêncio que precede algo fora do lugar.— Miguel? Clara chamou, com um tom que não usava desde os dias de UTI.— O que foi?— É sua mãe. E seu irmão. Estão aqui.As palavras congelaram minhas mãos. Senti o coração bater mais rápido, não de alegria, mas de algo próximo ao pânico. Levantei com esforço, peguei as muletas e fui até a sala de entrada. Lá estavam eles. Dona Vera, minha mãe, com os cabelos bem presos e o rosto severo. Rodrigo, meu irmão mais velho
A casa está em silêncio. Brenda dorme, a televisão está desligada e Clara recolhe as canecas do chá com passos leves. Eu estou na poltrona da sala, o caderno azul fechado sobre o colo, os olhos fixos no teto como se ali estivessem escritas respostas que ainda não sei formular.Desde que voltei, minha mente é um campo de batalha entre o passado e o que ainda não sei chamar de futuro. E Clara ela se move nesse espaço entre os escombros com uma leveza que me desconcerta.Não é invasiva. Não exige. Não se impõe. Ela apenas está. Todos os dias. Acordando antes que Brenda precise, preparando refeições simples, ajustando os travesseiros ao redor das minhas costas, levando e buscando a menina da escola, pagando contas que eu nem sabia que existiam.É como se tivesse preenchido todos os espaços que ficaram vazios.Mas o que me confunde não é sua dedicação. É a maneira como ela me olha quando pensa que não estou vendo. Há um silêncio entre nós que não incomoda. Ao contrário, ele aquece. M
A noite cai devagar sobre a casa. As janelas entreabertas deixam entrar um vento fresco que movimenta as cortinas como véus esvoaçantes. Clara prepara um chá na cozinha, enquanto Brenda, já de pijama, assiste um desenho no sofá. Eu estou no que transformamos em escritório. As estantes ainda estão no lugar. Meus livros, agora cobertos por uma fina camada de poeira, repousam como testemunhas silenciosas de quem fui dentro de uma caixa. O computador antigo está desligado. Uma poltrona de couro, afundada em uma das laterais, parece tão cansada quanto eu.Preciso decidir o que fazer, toda a opulência que tive no passado se foi, e hoje o que resta somente me garante seis meses de autonomia financeira.Eles me tiraram tudo!Mas tenho que pensar na Brenda, ela merece ter o melhor de mim.E a Clara também é uma incógnita, porque uma mulher tão bonita abriu mão da própria vida por mim e por minha filha?Sento-me com esforço. Clara me ajudou a chegar até aqui com as muletas. Antes de sair me
As Primeiras PegadasO sol nasceu tímido naquela manhã. Pelas frestas raios douradas atravessavam a janela do quarto ainda sem cortinas, pintando o chão de madeira com listras quentes. O cheiro de café fresco chegou antes do som dos passos de Clara. Era o primeiro amanhecer completo no sítio. O primeiro com a casa cheia de presença e possibilidade.Acordei antes do despertador imaginário que o silêncio da madrugada costumava acionar em mim. Me sentei com cuidado. O corpo ainda se acostumava com a liberdade que os músculos quase esqueceram. As muletas repousavam ao lado da cama como guardiãs. Me levantei devagar, apoiando os pés descalços no assoalho frio.Ao sair do quarto, fui guiado pelo aroma de pão assando e vozes infantis. Brenda falava alto, empolgada, como se cada frase fosse uma nova aventura.— Mas é sério, Clarinha! Dinossauros podiam voar e nadar! Dizia, sentada na ponta da cadeira da cozinha.— Alguns, sim. —Mas não ao mesmo tempo, né? Clara respondeu, rindo, enquan
A Casa Vazia de MimUM MÊS DEPOIS...O carro avança lentamente pela estrada de chão batido, levantando nuvens de poeira que se desfazem no ar como lembranças antigas.O som dos pneus sobre as pedras soltas é quase hipnótico. No banco de trás, observo a paisagem com as mãos apertadas sobre as pernas.As muletas descansam ao meu lado, pesadas como o silêncio entre nós.Cada solavanco parece cutucar feridas ainda em carne viva.Não sei se é o corpo que dói ou a alma que insiste em lembrar que algo se perdeu no caminho.Clara dirige com suavidade, como se já soubesse onde cada buraco da estrada se esconde.Conhece a rota, mas respeita o meu silêncio. Na cadeirinha ao lado, Brenda cochila.Seus
Último capítulo