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Vozes que Ecoam no Vazio

 Vozes que Ecoam no Vazio

Três dias de luz branca e passos apressados se fundem em um borrão de monitor e morfina até que, enfim, a equipe decide remover o tubo.

 A fonoaudióloga insere um insuflador, pede que eu tussa, e a cânula sai com um estalo molhado.

 Sinto como se tivessem arrancado uma espinha de peixe da minha garganta. O ar volta a ser meu, áspero, ardido, mas meu.

 Clara segura um copo com água gelada. Ela coloca um espessante translúcido que transforma o líquido em gelatina leve, pingando sobre minha língua.

 Saboreio aquilo como quem saboreia chuva após a travessia no deserto. Minha voz, quando surge, é apenas um fiapo: 

— Isadora? 

—Bernardo? 

Os nomes flutuam, frágeis, e se quebram contra o silêncio. 

Clara aperta os lábios. Antes que possa responder, o médico entra, trazendo um tablet com relatórios. 

Ele sorri de forma mecânica: 

— Miguel, vamos conversar sobre seu plano de reabilitação. Teremos meses de fisioterapia intensiva. 

—Mas acredito que conseguirá retomar grande parte das funções.

 Eu o interrompo, rouco: 

— Minha família? 

Ele olha para Clara como se pedisse socorro. Ela respira fundo. 

— Depois falamos sobre isso. Primeiro, precisamos focar em você. 

O primeiro golpe de abandono não é ausência de abraços; é ausência de respostas. 

Quando a equipe sai, Clara aproxima uma cadeira. Seu semblante é firme, mas os olhos brilham de tristeza contida. 

— Miguel, sua família acredita que você… 

— Que você não despertaria. As finanças foram comprometidas com tratamentos prolongados. 

—Sua mãe precisou vender a casa para cobrir dívidas médicas. 

—Seu agente desapareceu. Quando eu assumi seus cuidados, restava pouca verba do seguro. 

—Então continuei voluntariamente. 

—Eu não poderia largar Bernardo.

 A palavra “voluntariamente” me corta. Quero gritar que não preciso de caridade, mas minha voz falha. Viro o rosto, tentando engolir a vergonha junto com o oxigênio. 

Ela se adianta: 

— Não é pena, Miguel. Prometi à Isadora que protegeria vocês. Bernardo se apega a mim como se eu fosse âncora, como a sua própria mãe.

— e eu me apeguei também. Meu peito aperta. Penso em meu filho: 

Quatro anos agora, idade de imaginar monstros nos armários. Será que se lembra do pai antes do silêncio? 

Lembro-me dele rindo quando eu inventava histórias sobre dragões dorminhocos. 

Agora eu sou o dragão, preso na caverna. Horas depois, o fisioterapeuta chamado Júlio inicia a mobilização passiva de meus joelhos. 

Cada movimento dói como se o corpo fosse feito de vidro ressecado. 

O suor escorre, e minhas mãos agarram lençóis. Preciso que imagine estar andando para o filho Miguel 

— Júlio incentiva. 

— Visualização motora ajuda a plasticidade. Na primeira noite sem sedativos, Clara traz um tablet. 

Há fotos recentes: Bernardo correndo no jardim da clínica, cabelo escuro, olhos imensos que lembram Isadora. 

Ele segura um carrinho vermelho e grita “Vruum!” para ninguém. Minha garganta arde. O menino parece feliz, mas algo em seus olhos revela a falta de referência. 

— Ele virá amanhã, se você quiser. Diz Clara, quase sussurrando. Respondo seco: 

— Não preciso que ele me veja assim, dependente. 

— Ele precisa saber que o pai luta. O tom dela é firme.

 Eu fecho os olhos, viro-me para a parede, gesto infantil que me envergonha. 

Ainda assim escuto Clara arrumar os cabos com paciência. 

Sinto a mão leve sobre meu ombro e é paradoxal, mas aquele toque me irrita mais do que conforta. 

Piedade, penso. Apenas piedade! 

No dia seguinte, acordo com cheiro de sabão neutro e sons de risadas distantes no corredor.

 Brenda entra de mãos dadas com Clara.

 Ela veste um vestido de princesa, está sorrindo e segura um boneco de pelúcia. Para a dois metros do leito, observa todos os tubos e órteses. Seu rosto mistura curiosidade e receio. 

— Esse é o papai, amor ele acordou! Clara diz, ajoelhando-se ao lado dela.

 Ele dá meio passo. Eu tento levantar a mão, mas o gesto é lento. Minha voz soa como lixa:

 — Oi, princesa. 

Brenda se esconde atrás da perna de Clara. Meu peito implode num silêncio vergonhoso. 

Ele não me reconhece. Sou um estranho magro, de barba por fazer, preso a fios. 

Sinto lágrimas ameaçarem, mas não posso chorar diante dela. Clara entrega a ela o boneco: 

— Lembra do Dr. Bracinho, você disse que curava tudo? Ele quer ajudar o papai. 

Brenda se aproxima, coloca o boneco na minha barriga, e recua. O calor daquele objeto infantil pesa mais que qualquer sonda.

 Engulo seco. 

— Obrigado filha. Clara sorri, emocionada. Quando Brenda sente o sorriso dela, relaxa o corpo, segura minha mão com dedos minúsculos. 

Pela primeira vez desde o despertar, algo rompe minha armadura: 

O amor que escapa através daquele toque infantil!

 A visita dura poucos minutos. Quando saem, o quarto volta a ser apenas máquinas. Mas o boneco continua sobre meu peito.

 Uma sentinela de pano lembrando-me de quem devo ser. Na madrugada, as luzes se apagam e ouço Clara falar com alguma colega do plantão: 

— Ele é cabeça dura, mas tem um coração enorme. Só precisa se lembrar disso. 

— Você se apega demais, Clara. A colega adverte. 

— Não estou me apegando. Ela suspira. 

— Já estou apegada há muito tempo. 

A confissão paira no ar, suave como sedativo. 

Meu coração estremece. 

Será amor? 

Gratidão?

 Pena? 

Não sei. Só sei que, pela primeira vez, não me sinto completamente sozinho. 

Dois dias depois, consigo sentar à beira do leito com auxílio de um guincho hidráulico. 

O espelho diante de mim revela clavículas salientes e cicatrizes roxas descendo pelo tronco. Minha barba é aparada, mas ainda pareço alguém que emergiu de uma guerra interna. 

A contadora, dona Elvira,me visita para discutir finanças. 

Ela mostra gráficos: despesas hospitalares, contratos quebrados, dívidas literárias. Minha conta bancária está quase no vermelho. meu carro foi vendido para pagar parte da internação. 

Meus royalties despencaram depois que parei de escreve

r. 

— Há um fundo de emergência, mas se esgotará em seis meses, ela explica. 

— Você precisará de alternativas.

E eu sinto o peso disso.

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