A Mulher das Cinzas
Naquela noite, não durmo. O corpo até tenta, exausto com as sessões de fisioterapia e os estímulos motores que meu cérebro ainda hesita em coordenar.
Mas a mente não se cala. Isadora. Clara. Bernardo. Uma cadeia de nomes que agora se enrosca em dor, gratidão e confusão.
Às quatro da manhã, Clara retorna. O turno dela terminou, mas ela sempre passa antes de ir embora.
Não sei se é rotina ou necessidade. Talvez as duas coisas.
Ela traz um copo com água e um olhar hesitante.
— Conseguiu descansar?
Faço que não com a cabeça. Meus olhos ardem.
— Você a conhecia bem, não é?
Ela não se surpreende com a pergunta. Suspira e se senta.
— Muito mais do que imaginava ser possível. Conheci a Isadora quando ela procurou reabilitação pós-parto.
—Brenda nasceu prematuro e ela teve dores na lombar por meses. Eu ainda era nova na equipe da clínica. Nos tornamos amigas logo no primeiro mês.
— E ela nunca me disse.
— Porque você estava sempre escrevendo, viajando.
—Ela não queria te preocupar. Isadora era dessas pessoas que cuidam de tudo em silêncio.
Essa frase me quebra de novo.
Lembro-me das vezes em que voltei de eventos cansado demais para conversar.
Em que respondi com um “uhum” distraído quando ela queria dividir algo.
Eu pensava estar construindo nosso futuro.
Estava, talvez, só me afastando.
Clara continua:
— Às vezes eu ia até a casa de vocês para brincar com Brenda.
—Isadora dizia que precisava de uma amiga que não estivesse conectada ao seu universo literário.
Uma ilha no caos.
Ela ri com suavidade.
— Ela fazia panquecas toda terça.
— Era quase um ritual. E me contava dos livros que você escrevia. Lia tudo antes da publicação.
—Eu era sua maior fã.
Meus olhos enchem d’água.
— E você?
— Eu o conhecia pelas palavras. Antes de te conhecer pessoalmente. Confesso que esperava alguém arrogante.
Mas você era tão humano. Quando teve o acidente, Isadora não saiu do seu lado. Ela lia seus próprios textos para você.
—Dizia que sua alma estava ouvindo.
As lágrimas escorrem. Não há como segurá-las.
— Eu falhei com ela, Clara. Com os dois.
— Não diga isso. Você adoeceu. Você lutou. Está lutando.
— E a minha família desistiu de mim.
Ela não rebate. O silêncio confirma.
— Eu devia ter estado lá quando tudo aconteceu.
— Ela sabia que você não podia. Por isso confiou em mim.
Essa confissão muda tudo. Não estou diante apenas de uma enfermeira cuidadosa. Clara foi o elo entre a vida e a morte para Isadora. Foi sua confidente.
A mulher que segurou minha família quando eu não podia.
— Brenda Ele gosta de você?
Ela sorri.
— Muito. Ela me chama de Clarinha. Gosta quando canto pra ele dormir.
–E me conta coisas do jeito que uma criança conta:
—Com o coração. Às vezes, pergunta por você. Pergunta se o papai vai acordar e escrever histórias pra ele.
Fecho os olhos. O peso da ausência é brutal.
— Ele me reconheceu?
— No início, não. Agora ele sabe que o pai está aqui.
Clara se levanta. Vai até a cômoda ao lado e retira um envelope.
— Isso era da Isadora. Ela deixou guardado comigo. É pra você.
Abro com as mãos trêmulas. Dentro, um bilhete com a letra arredondada que eu conhecia tão bem:
"Se você acordar e eu não estiver aí, quero que saiba: você sempre foi o amor da minha vida. Brenda é a parte mais bonita de nós. E Clara confie nela. Ela é a ponte entre você e ele. Ela é minha irmã de alma."
Minha respiração trava.
Clara se aproxima devagar.
— Eu não vim pra tomar o lugar de ninguém, Miguel. Mas se quiser, posso continuar por perto, pela Brenda.
—E por você também.
Apenas balanço a cabeça, engolindo o choro.
A mulher das cinzas se foi.
Mas a mulher que ficou...
Talvez seja o recomeço!
As palavras de Clara ainda ecoam dentro de mim, como se estivessem gravadas no concreto fresco do meu peito
"A ponte entre você e ele."
"Irmã de alma."
O bilhete de Isadora repousa sobre meu colo. Minhas mãos tremem enquanto o releio, tentando absorver cada curva da letra, cada escolha de palavra.
Ela sabia.
De alguma forma, sabia que eu não estaria lá.
Que eu acordaria tarde demais.
— Ela te deixou isso antes de morrer?
— pergunto, tentando manter a voz firme.
Clara confirma com um gesto contido, sentando-se novamente.
— Pouco antes de perder a consciência. Ela insistiu que eu escrevesse.
—Eu anotei cada palavra. E depois, ela me fez prometer. Que entregaria a você quando fosse o momento certo.
—Ela teve que vender a casa, e alugou uma mais próxima do hospital assim diminuiria as despesas e ganharia tempo.
—No dia da tragédia Brenda estava comigo, Isadora estava muito cansada e precisava descansar.
—Os bombeiros disseram que foi um vazamento de gás.
—Tentamos tudo mas ela não resistiu infelizmente.
Clara se cala, seu rosto triste.
— E você esperou tudo isso por mim?
— Não foi por obrigação.
—Foi por afeto.
—Foi por respeito.
—Foi por amor, talvez!
Eu a encaro em silêncio.
Pela primeira vez, enxergo Clara sem o manto da profissional que cuida de mim.
Vejo a mulher que ficou quando todos foram embora.
A que abraçou uma filha que não era seu, que enfrentou a dor da perda junto com a minha família, mesmo sem ter laços de sangue.
Ela ficou!
E esse gesto pesa mais do que qualquer voto familiar.
— Você tem noção do que isso significa pra mim? Pergunto, sentindo a garganta arder.
— Eu fui deixado numa cama, desconectado do mundo, enquanto você reconectava tudo por mim.
Ela balança a cabeça, contida, os olhos marejados.
— Eu não queria que você acordasse sozinho.
— Você me salvou. Minha voz falha.
— Salvou ela. Salvou o que restava de nós.
Por um segundo, ela parece querer fugir do que ouve. Desvia os olhos, mas há um leve sorriso nos cantos da boca.
— Eu não fiz isso sozinha.
—Brenda me deu mais do que eu fui capaz de oferecer. Ela é a alegria.
—É ela que me segura nas noites em que ainda ouço a voz da Isadora chamando pelo nome dela.
— Ela sente falta dela?
— Sente. De um jeito que só crianças entendem.
Ela fala dela como se ela estivesse ali como se ainda visse o cabelo dela se mexer quando passa a brisa pela janela.
—Às vezes, ela olha pro céu e diz:
"mamãe acendeu aquela estrela."
Choro.
Não sei quando foi a última vez que chorei assim. E não me importo.
Clara se levanta, pega uma gaze e enxuga meu rosto com cuidado. Não como quem limpa um paciente, mas como quem toca alguém que aprendeu a amar em silêncio.
— Elas precisa de você, Miguel.
—Precisa do pai. Não do escritor, não do homem famoso.
— Do pai!
Fecho os olhos. O pai.
O homem que sabia contar histórias, mas não conseguia estar presente quando mais importava.
O homem que acreditava que construir um legado era suficiente, sem perceber que o mais importante era construir memória com quem se ama.
— E se ela não quiser saber de mim?
— Ela pergunta por você.
—Tem medo de esquecer seu rosto.
—Mas sabe que seu coração está aqui.
—Eu contei isso a ela tantas vezes que virou verdade dentro dela.
— Você a ama como se fosse sua.
— Ele se tornou parte de mim. Mas nunca deixei de lembrá-lo quem você é. Sempre foi:
“O papai que está dormindo”.
–E quando você acordasse, ela teria o direito de escolher.
—Mas Miguel…
Ela pausa, emocionada
— não se subestime. O amor de uma criança é o mais puro que existe.
—Ela vai te reconhecer pelo olhar.
Quero acreditar. Parte de mim acredita. Parte de mim ainda se sente como um intruso na própria história.
— Você teve medo que eu rejeitasse tudo isso, não teve?
— Tive. Tive medo de que acordasse e achasse que eu invadi sua vida.
—Que desrespeitei o espaço da Isadora.
Mas eu só cumpri uma promessa.
—E me apeguei no processo.
— Apegou-se a mim também?
Ela não responde de imediato. Fica em silêncio por um instante, olhando para as mãos entrelaçadas no colo.
— Sim. Não de uma forma bonita ou idealizada. Mas verdadeira. Enquanto você dormia, eu lia seus livros em voz alta. Suas palavras me ajudaram a não desmoronar.
—Às vezes eu achava que você me ouvia. Que quando eu dizia “boa noite,” Digo, sem pensar.
— Quero vê-la.
Ela sorri.
— Eu vou cuidar para que esse encontro seja leve.
—Sem expectativa. Só amor.
Quando a porta se fecha atrás dela, respiro fundo.
O bilhete de Isadora ainda repousa ao meu lado.
Minha esposa está morta.
Minha filha quase foi levada de mim.
Minha família me desc
artou.
Mas eu ainda tenho algo.
Ainda tenho a chance de ser o pai que ela precisa.
E Clara.
A mulher das cinzas partiu. Mas aquela que ficou...
É a ponte entre o que fui e o que ainda posso me tornar.
E talvez, só talvez, isso seja o início de algo que ainda vale a pena escrever.