O Primeiro Respiro
O som que me acorda não é um som humano. É um apito contínuo e metálico, acompanhado por um sussurro eletrônico que sobe e desce como ondas presas dentro de uma concha. Abro os olhos, ouço vozes abafadas, passos apressados, o estalar de luvas de látex.
A luz branca da UTI corta minha vista.
Tudo cheira a antisséptico, frio e distante, como se o mundo inteiro tivesse sido mergulhado em álcool. Estou deitado. Um tubo invade minha garganta.
Não me lembro de ter escolhido respirar assim. Tentam me virar com cuidado, sinto as mãos firmes sob os ombros, cordões e fios deslizando sobre minha pele fria.
Meu corpo parece não pertencer a mim.
Tento levantar o braço, mas os músculos respondem como borracha molhada.
O coração b**e, mas cada batida parece trabalho pesado. O dreno de ar ronca perto da minha orelha.
Uma enfermeira uniforme azul-escuro, máscara ajustada examina o monitor.
Vejo o crachá: “Clara S. Almeida”. O nome produz uma fagulha escondida na minha mente, mas não sei por quê.
Ela se inclina e pressiona algo no respirador. Sua voz é baixa, profissional, mas sinto calidez na entonação.
— Pressão estabilizando. SatO₂ em 95%. Bom sinal. Outro profissional, talvez o intensivista, responde sem olhar para mim:
— Substituam a infusão de noradrenalina. Ele está saindo da sedação; ajustem a dose. Saindo.
Eu estive preso em alguma névoa? Tento lembrar.
Há buracos escuros, memórias em dissolução:
Um volante entre meus dedos, chuva nos vidros, o clarão dos faróis contrários.
O impacto é só um lampejo, depois, nada.
Ela encontra meus olhos. Eles devem estar amedrontados, porque ela suaviza o olhar por cima da máscara:
— Miguel, você acordou! Eu sou a Clara. Você vai sentir desconforto, mas estamos aqui.
Quero perguntar onde estou, quanto tempo dormi, onde está Isadora, onde está minha menina.
Mas o tubo me silencia.
A garganta queima!
Minhas mãos pousam pesadas como pedra nos lençóis estéreis.
Ela pressiona meus dedos de leve, sinaliza que compreende.
Um relógio digital na parede marca 04:12. Ignoro a data.
O vidro à frente exibe o reflexo pálido de um homem barbudo, abatido, pele colada aos ossos. Sou eu.
Sinto um tremor, não de frio, mas de pavor existencial:
E se tudo o que me definia tiver ficado preso em algum ponto da estrada antes do choque?
Código azul! alguém grita em outro leito. Médicos avançam como enxame. Seringas trocam de mãos, bomba de infusão apita. O som do desfibrilador estoura no corredor invisível.
A UTI não dorme. Ela respira pelas máquinas, vive de adrenalina!
Minha cama é afastada levemente enquanto reorganizam cabos. Uma fisioterapeuta ajusta meu membro inferior com movimentos controlados, prevenindo contraturas.
Mensura o grau de espasticidade e anota algo. Sinto-me reduzido a estatísticas, mas aqueles toques gentis seguram minha alma que escorrega.
— Vamos começar os estímulos sensoriais. Diz Clara, erguendo uma fotografia laminada diante de mim.
Reconheço meus próprios traços, mais jovem, sorrindo ao lado de Isadora, seus cabelos de cobre soltos, olhos cor de mel inflamando a tarde.
Entre nós, um bebê de bochechas gordinhas vestindo macacão azul: Bernardo.
O peito trava num espasmo de saudade que nem o tubo consegue conter. Lágrimas ardem, mas mal escorrem. Clara percebe.
Sua mão quente enxuga o canto de meu olho com gaze estéril.
— Eles te amam, Miguel. Volta devagar. Eu prometo cuidar dessa ponte até você atravessar.
Quero berrar perguntas:
Por que ela fala no presente?
Onde estão?
A foto está desgastada no canto, há quanto tempo foi impressa?
O ventilador sibila, marcando cada respiração que ainda não domino.
As luzes se apagam parcialmente às 05:00. Horário de repouso relativo.
Clara confere os parâmetros mais uma vez, depois se senta perto, digitando algo no prontuário eletrônico.
Pelo vidro, vejo a alvorada tingir de púrpura o corredor. O mundo lá fora existe sem mim há quanto tempo?
Fecho os olhos de novo, não para dormir, mas para impedir que a dor me rasgue.
Deixo que o apito do monitor substitua minha antiga cadência de teclas, como se cada beep fosse uma palavra que minha consciência tenta reconstruir num romance que talvez ninguém queira ler.
A madrugada termina comigo suspenso entre a vida biológica e a memória em r
uínas.
Mas eu respiro. Eu estou aqui!
O primeiro respiro não é de ar:
É de espanto.