Início / Romance / Depois do Fim Você / Um Estranho no Berço
Um Estranho no Berço

 Um Estranho no Berço

O tempo não passa na UTI. Ele se estende como um tecido elástico, estalando entre um exame e outro, entre um suspiro e a próxima sessão de fisioterapia.

 Mas hoje… 

Hoje o tempo se arrasta de um jeito diferente. 

Porque Clara disse que ela viria.

Brenda.

Minha filha.

A palavra ainda soa estranha na minha mente, como uma herança que não sei se mereço. 

A menina que deveria estar no meu colo, ouvindo histórias inventadas, crescendo entre meus abraços, está a caminho deste quarto, e eu não faço ideia do que vou encontrar no rosto dela.

Será a segunda vez que vou vê-lo, após tudo esse tempo, o que me deixa muito ansioso.

As mãos suam, mesmo com o frio do ar-condicionado. 

Tento me ajeitar melhor na cama, mas os músculos protestam. Há tubos demais, fios demais, e eu me sinto menos homem e mais máquina.

 Que tipo de imagem isso oferece a uma criança?

Clara entra antes das nove. 

Traz um suco, um travesseiro extra e uma leve tensão no olhar. 

Está mais arrumada que de costume. Cabelo preso em trança, um batom suave. 

Talvez por ele. 

Talvez por mim.

— Ela está com o psicólogo da clínica. Fizeram um preparo ontem e hoje cedo. 

—Explicaram que você está se recuperando, que pode parecer diferente, mas que é o pai dele.

— E o que ela disse? Pergunto, a voz rouca.

— Que quer mostrar o desenho novo. E que sente saudade do “papai dorminhoco”.

Sorrio, ainda que a emoção me roube parte do ar. 

“Papai dorminhoco”. 

Uma forma infantil de manter viva uma esperança.

O som da porta se abrindo rouba o resto da minha coragem.

Ela entra com passos miúdos, hesitantes, segurando uma folha dobrada. 

Os cabelos escuros estão mais compridos do que me lembro nas fotos. Os olhos são enormes, castanhos como os de Isadora. 

E há algo neles que me desmonta por dentro.

Ela para a poucos passos da cama.

 Fica ali, com Clara agachada ao lado, e olha para mim como quem encara um personagem de conto de fadas ou de um pesadelo.

— Oi, Brenda. Digo, baixinho.

Ele não responde. Apenas observa. 

Não há reconhecimento imediato, mas também não há medo. 

Ele me olha tentando entender.

Clara o incentiva com um sorriso:

— Quer mostrar seu desenho pro papai?

Brenda caminha devagar até a lateral da cama. 

Estende a folha, e com dificuldade apoio o braço sobre a mesinha para pegá-la.

É um rabisco colorido: 

Um boneco de braços longos, um cachorro azul e uma mulher com tranças.

 No canto, uma casa com uma árvore.

— Quem são? Pergunto demonstrando interesse.

— Esse é você, ele aponta. 

— Dorminhoco. 

—Esse é o Bolota.

— O cachorro?

— Uhum. Não temos, mas vou ganhar um.

 Ele sorri de lado. 

— Essa é a Clarinha. E essa aqui era a mamãe.

Ele aponta para uma outra mulher do desenho, que está cheia de corações em volta.

 O peito aperta.

— Você lembra dela?

— Às vezes, quando a Clarinha conta histórias dela pra mim. Ela encosta os dedos no desenho, traçando os corações. 

— Ela fazia panqueca que virava bichinho. Nenhuma outra panqueca faz isso.

Clara ri baixinho atrás dele. Eu também sorrio, mas meus olhos queimam.

— E você lembra de mim? Pergunto, com um nó na garganta.

Ela hesita.

— Você ficava num quarto grandão, cheio de cheirinho ruim e luz piscando. 

—Eu falava com você, mas você não respondia.

— É, eu tava dormindo.

— Clarinha disse que você tava sonhando comigo. 

—É verdade?

Assinto.

— Todo dia.

Ela me encara por um instante. Depois caminha até o outro lado da cama e, com naturalidade, encosta a cabeça no meu braço.

 Fica ali. Em silêncio.

Eu não ouso me mexer.

É como se o tempo tivesse parado, e tudo que restasse no mundo fosse o calor daquele pequeno corpo confiando em mim.

Clara limpa os olhos discretamente. Depois se aproxima.

— Brenda, é hora de deixar o papai descansar um pouco. Você pode voltar amanhã, se quiser.

— Quero. Quero mostrar meu livro novo de dinossauros. E ensinar o nome do tricerátopo.

— Eu vou adorar. Respondo, e ela sorri antes de sair, de mãos dadas com Clara.

A porta se fecha.

E eu desabo.

Clara volta duas horas depois. Encontra-me com os olhos ainda úmidos, a folha do desenho repousando sobre o peito.

— Ela gostou de você.

— Eu não o mereço.

— Ela é só uma criança, Miguel. Ela ama quem ama ela. E você, você é o pai dele. 

—Ninguém pode tomar esse lugar.

— Mas você ocupou esse espaço. 

—Você foi tudo o que ela precisava.

— Fui o que ela tinha. E dei o melhor que pude. 

—Mas não sou você.

— Ela te chama de Clarinha com tanto carinho…

— E vai continuar chamando. Não é competição. Ela se aproxima e ajeita os travesseiros ao redor de mim. 

— Não se culpe por ter dormido. 

—O que importa é o que você faz agora que está acordado.

— Ela encostou em mim, Clara. Como se fosse natural.

— Porque é. Porque é amor.

Eu respiro fundo. Pela primeira vez desde que despertei, sinto algo diferente me invadir. 

Um tipo de fé silenciosa, tímida, que começa a se construir nas rachaduras da culpa.

Olho para Clara.

— Obrigado por ter sido o m

undo dela enquanto eu estava fora do mundo.

Ela apenas sorri. E segura minha mão.

Sem palavras.

Sem exigências.

Apenas o tipo de gesto que pode transformar um estranho… 

Em pai.

No pai que eu mesmo não sei se conseguirei ser!

Continue lendo este livro gratuitamente
Digitalize o código para baixar o App
Explore e leia boas novelas gratuitamente
Acesso gratuito a um vasto número de boas novelas no aplicativo BueNovela. Baixe os livros que você gosta e leia em qualquer lugar e a qualquer hora.
Leia livros gratuitamente no aplicativo
Digitalize o código para ler no App