O Nome Que Ninguém Diz
A pergunta paira no ar como um sopro frio.
— Onde está Isadora?
Clara não responde de imediato. Está parada ao lado do monitor cardíaco, como se aquele bipe contínuo pudesse poupá-la do que está prestes a dizer.
Seu silêncio é mais barulhento do que qualquer sirene na UTI.
— Clara, por favor!
Minha voz ainda é arranhada, mas o peso das palavras faz com que ela se vire.
Seus olhos evitam os meus.
— Miguel, acho que ainda não é o momento…
— Não é o momento? Interrompo, com mais firmeza do que achei que fosse capaz.
— Eu acordei depois de…
—Nem sei quanto tempo estou aqui.
—Quero saber da minha esposa.
—Ela está bem?
—Ela sabe que acordei?
Clara senta devagar na cadeira ao lado da cama. O jeito que ela prende a respiração me dá a resposta antes mesmo de qualquer palavra.
Ela entrelaça os dedos sobre o colo e olha fixamente para o lençol esticado sobre minhas pernas.
Clara permanece imóvel por um momento. Suas palavras ainda pairam entre nós, mas agora é o silêncio que fala mais alto.
A sala está fria, e o som das máquinas me lembra a cada segundo que ainda estou preso a este corpo que não me obedece. Mas, por dentro, sou uma chama desordenada de emoções:
Choque,
Culpa,
Tristeza,
Raiva.
— Mais do que eu imagina? Repete, engasgando.
— Quer dizer o quê com isso? Pergunto.
Ela desvia os olhos por um segundo, como se estivesse pesando a próxima frase com cuidado. Então inspira fundo e continua:
— A Isadora e eu éramos muito próximas. Começamos como colegas na reabilitação, mas logo viramos amigas.
—Eu era a pessoa que ela procurava quando precisava falar de você. E eu, eu a escutava.
— Falava de mim?
—O quê?
— Que você era intenso demais. Que se enterrava nos livros e às vezes esquecia que havia um mundo além das palavras.
Que tinha medo de perder você pro sucesso. Mas que amava você com cada fibra do corpo dela.
— Clara sorri de lado, triste.
— Ela dizia que quando você escrevia sobre amor, era porque tinha conhecido o amor com ela.
Aquela frase me corta por dentro. E ao mesmo tempo, algo estranho acontece:
Uma ternura me toca, inesperada. Como se ouvir isso de Clara, mesmo que me machuque, também me trouxesse Isadora de volta por um segundo.
Clara não mente. Eu sinto isso.
— Por que ela te pediria isso?
—Pra cuidar da filha dela, do minha filha? Pergunto.
— Vocês eram mesmo tão próximas assim?
Clara engole seco. Sua voz falha ao começar, mas se sustenta:
— Ela não confiava em muita gente, Miguel.
—E não era sobre mim ser especial. Era sobre ela não ter mais ninguém.
—E sim, éramos próximas! Nos falávamos todos os dias.
—Trocávamos mensagens, ela mandava vídeos do Brenda, falava dos seus silêncios.
—Ela sentia sua falta mesmo quando você estava em casa.
Essa última parte me atinge com força. Quantas vezes eu estive ali fisicamente, mas com a mente em outro mundo?
Um enredo.
Uma ideia de romance.
Uma entrevista?
Clara vê meu rosto cair e se levanta, como se quisesse aliviar a pressão.
— Eu não estou aqui pra te acusar, Miguel. Se estou aqui é porque ela confiava em mim.
—E porque eu amava as duas. Amo o Brenda.
—Como se fosse minha filha.
— Você o chama de filho?
Ela não responde de imediato. Depois, com firmeza, diz:
— Nunca substituí vocês. Mas ele me chama de “Clarinha”.
—E quando tem febre, e a mim que ele tem para procura.
—Quando sonha com dragões, sou eu quem espanta.
—Quando sente saudade, sou eu quem segura a mão dele até ele dormir.
Eu me calo.
Porque não sei o que dizer. Porque cada palavra de Clara é uma prova viva de que enquanto eu dormia, ela estava presente.
—E minha família...?
— Eles me abandonaram mesmo, não foi?
Ela hesita, mas confirma com um aceno lento.
— Sim. A partir do sexto mês de coma, as visitas rarearam. Depois do primeiro ano, seu irmão sumiu. Sua mãe disse que não suportava ver você assim. O plano de saúde venceu, as contas vieram. Eles tiraram seu nome da editora. Fecharam seu escritório.
—E…
—Venderam parte dos direitos dos seus livros para cobrir dívidas, e Isadora vendeu a casa, precisa de dinheiro.
Meu estômago embrulha. Não pelas perdas financeiras, mas pelo completo desprezo.
— E você? Por que ficou?
Ela se aproxima. Seus olhos estão úmidos, mas não frágeis.
— Porque Isadora me pediu.
—Porque Brenda precisava de alguém.
—E porque, mesmo você desacordado, eu acreditava que ainda havia algo aí dentro.
—Eu lia seus livros. Sabia que esse homem existia.
—Não consegui ir embora.
— Você ficou por causa dela? Por causa delas? Pergunto, num tom mais duro do que pretendia.
— Ou ficou porque sente algo por mim?
Clara não se abala. Mas o tempo que leva para responder parece eterno.
— Fiquei por todos os motivos. E por nenhum.
—Eu simplesmente não consegui te deixar, Miguel. Nem ela.
—Não sei se é amor, ou uma espécie de lealdade que nasceu da dor.
—Mas sim, eu sinto algo por você. E não vou pedir desculpas por isso!
O silêncio depois dessa frase é longo. Mas é um silêncio diferente. Cheio.
Carregado de verdades que, até agora, estavam trancadas em nós dois.
Pela primeira vez desde que acordei, não sinto raiva.
Nem revolta. Só um vazio estranho que começa a se preencher com algo novo.
Um tipo de gratidão confusa. Um sentimento que ainda não tem nome.
Clara se afasta da cama e ajeita o lençol nos meus pés. Depois me olha uma última vez antes de sair.
— Se não quiser que eu fique, basta dizer. Mas saiba que não estou aqui por piedade.
—Estou aqui porque escolhi estar.
Ela vai embora antes que eu
possa responder.
Mas mesmo com as máquinas apitando e a solidão de mais uma madrugada na UTI algo em mim entende:
Ela está certa.
E eu estou mais acordado do que jamais estive.