Nos dias que seguem, Brenda retorna todas as manhãs.
Chega de mãos dadas com Clara, com um brinquedo novo ou um desenho improvisado.
Fala pouco no começo, mas observa tudo.
Testa meus limites sem perceber:
Esconde o boneco atrás do suporte do soro.
Me pergunta quantos monstros cabem dentro de uma cama de hospital.
Tenta me ensinar os nomes dos dinossauros enquanto arrasta a cadeira para mais perto da cabeceira.
E eu?
Eu tento ser pai.
Mas me sinto um impostor.
Minha voz ainda falha.
Os movimentos, lentos e doloridos.
Não posso correr atrás dela, nem a pegar no colo, nem fazer cócegas como fazia antes, se é que fazia.
As lembranças ainda vêm como fotografias borradas:
Flashes de um riso, de uma tarde no parque, de um cheiro doce atrás da orelha.
Mas tudo distante, como se tivesse sido vivido por outro homem.
Às vezes, quando ele sai, olho para Clara e digo, sem conseguir esconder o desconforto:
— Acho que estou mais atrapalhando do que ajudando.
Ela nunca rebate com frases prontas. Apenas observa, senta ao meu lado e segura minha mão.
— Ser pai não é sobre fazer.
—É sobre ser!
—E você está aqui. Presente.
—Ela sente isso!
Mas eu duvido. O amor de Clara por ela é evidente.
—É calor, colo, rotina!
—E o meu?
O que posso oferecer, preso a essa cama, cercado de aparelhos e limitações?
Na quarta manhã, ela me pergunta:
— Você vai andar logo?
Demoro a responder. Olho para Clara, depois para ela.
— Talvez não tão logo quanto eu gostaria.
—Mas tô tentando!
Ele pensa por um segundo. Depois apoia o queixo no colchão, me olhando com os olhos bem abertos:
— Então a gente pode brincar de coisas que não precisam andar.
—Tipo jogo da memória.
—E desenhar!
Sorrio, aliviado.
— Gosto disso.
E ele começa a listar as ideias:
“desenho de monstro, desenho de foguete, desenho de um papai que vira robô com braço de ferro.”
Eu rio. E, por dentro, um pedaço do gelo começa a derreter.
Mais tarde, Clara me ajuda a sentar com as costas apoiadas nos travesseiros.
A fisioterapia foi mais leve hoje. Estou cansado, mas sem dor!
Ela serve chá numa caneca térmica com cuidado.
Enquanto mexe o líquido com uma colher de plástico, diz:
— Ela fala sobre você para os outros profissionais.
—Com orgulho.
— Mesmo?
— Diz que o pai dela é escritor.
—Que sabe inventar histórias de dormir.
—E que agora vai escrever um livro novo…
—Só pra ela.
Meu peito aperta.
— Ela me idealiza, Clara!
—Mas e quando perceber quem eu sou agora?
—Um homem que não consegue ficar de pé, que perdeu tudo, que mal consegue virar sozinho na cama?
Ela se senta na poltrona e cruza as pernas com calma.
— Ela não te ama por causa do que você pode fazer.
—Ela te ama porque é você. O pai!
—Isso não muda. Só cresce!
— E se eu fracassar com ela como fracassei com a Isadora?
Ela não se abala.
— Você não fracassou com a Isadora. Você amou do jeito que sabia.
—E agora pode amar de um jeito novo. Se você se permitir.
Ficamos em silêncio por alguns minutos. O chá esfria na xícara.
Ela olha para a janela, onde a luz suave da manhã entra em ângulo enviesado.
— Você quer que eu continue ao lado de vocês? Ela pergunta, com a voz baixa.
— Como assim?
— Quando você estiver reabilitado. Quando puder sair daqui. Brenda confia em mim.
—Mas se for um peso pra você, posso me afastar.
O coração dispara.
— Clara, eu não sei o que somos.
—Não sei nem quem eu sou ainda.
—Mas se você sair…
—Não sei se consigo reconstruir esse mundo sem você nele.
Ela sorri, e os olhos dela brilham com a sinceridade que sempre teve.
— Não estou cobrando respostas.
—Só quero que saiba que estou aqui. Como ponte, como apoio.
—Como o que você precisar!
Naquela noite, Brenda volta após o jantar. Está mais quieta.
—Traz um caderno e se aproxima da cama.
— Posso escrever uma história com você?
— Claro! Digo, emocionado.
Ele senta ao meu lado, e Clara traz uma prancheta.
Ela começa a ditar, enquanto Clara anota:
— Era uma vez um castelo onde morava um menino e seu pai robô. O pai estava dormindo há muitos dias. Mas um dia…
—Ele acordou.
Faço um esforço para segurar as lágrimas. Contínuo:
— E mesmo sem andar ainda, ele era o pai mais forte do reino. Porque sabia amar com o coração.
— E a menina gostava de ficar do lado dele.
—Mesmo que as outras princesas achassem que ela precisava de um príncipe.
— Porque o amor dela era a espada dele.
Brenda sorri.
Clara anota tudo.
E eu, pela primeira vez, me sinto digno daquele título.
Pai.
Quando Clara a leva para o quarto infantil da clínica, fico olhando para a folha rabiscada, em nossas vozes.
Um conto esc
rito a três mãos. Imperfeito.
Mas verdadeiro!
Fecho os olhos.
Não sei andar. Ainda não sei escrever.
Mas hoje…
Hoje fui pai.
E isso é mais do que qualquer final de livro poderia oferecer.