A Casa Vazia de Mim
UM MÊS DEPOIS...
O carro avança lentamente pela estrada de chão batido, levantando nuvens de poeira que se desfazem no ar como lembranças antigas.
O som dos pneus sobre as pedras soltas é quase hipnótico. No banco de trás, observo a paisagem com as mãos apertadas sobre as pernas.
As muletas descansam ao meu lado, pesadas como o silêncio entre nós.
Cada solavanco parece cutucar feridas ainda em carne viva.
Não sei se é o corpo que dói ou a alma que insiste em lembrar que algo se perdeu no caminho.
Clara dirige com suavidade, como se já soubesse onde cada buraco da estrada se esconde.
Conhece a rota, mas respeita o meu silêncio. Na cadeirinha ao lado, Brenda cochila.
Seus cabelos bagunçados tocam a bochecha, e a respiração lenta acompanha o balanço suave do carro.
— Está tudo bem? Clara pergunta, sem tirar os olhos da estrada.
Demoro a responder.
Olho para fora:
Cercas rústicas cobertas de trepadeiras, galhos secos se entrelaçando, um velho poste de madeira inclinado como se estivesse cansado de ficar em pé.
— Não sei, digo enfim.
— Acho que nunca estive tão perto e tão longe de mim mesmo.
Ela apenas suspira e reduz ainda mais a velocidade.
À frente, o portão de madeira escura surge como um marco esquecido no tempo.
Está meio torto, as dobradiças rangem com o vento.
Uma placa enferrujada balança num prego solto:
Sítio das Palmeiras.
A vegetação cresceu sem ordem.
O mato avançou pelo caminho de pedras.
Flores silvestres brotam entre as frestas como se tentassem manter alguma beleza onde tudo parecia parado.
— Está igual. Murmuro, quase sem voz.
— Está. Fiz o possível pra deixar pronto pra sua chegada, mas sem mexer demais, tanto pelo tempo que foi curto como você deve escolher como quer o lugar também. Responde Clara, suave.
— Ninguém veio aqui antes?
— Ninguém sabia desse lugar, somente após a morte de Isadora, os documentos foram encontrados.
—Só você sabia da existência desse lugar.
Desço com esforço, apoiado nas muletas. Os passos são curtos, tortos, cansados.
Clara se aproxima, segura meu braço com delicadeza e me ajuda a caminhar.
O ar é puro.
Tem cheiro de terra molhada e eucalipto.
Ou talvez seja o cheiro do começo.
Ou do fim de uma fuga.
A casa é simples, feita de madeira, com janelas verdes e um alpendre pequeno.
Parece observar minha chegada com respeito. Eu comprei este lugar um dia antes do acidente. Queria um refúgio, um canto de paz.
Acabei ficando sem nada, exceto por este pedaço de chão que nunca cheguei a conhecer de verdade.
Subo os degraus com esforço.
Clara destranca a porta.
O som do trinco ecoa como um convite para um tempo que nunca vivi.
Entramos!
O cheiro de madeira antiga e poeira adormecida me envolve.
Há uma manta dobrada sobre o sofá, estantes vazias, paredes nuas.
Não há marcas de história aqui.
Só a promessa de que alguma poderá começar, e eu espero que está seja da forma correta.
Se não por mim mas pela Brenda.
— Está vendo essa parede? Clara aponta.
— Poderia ser o seu escritório.
Assinto em silêncio. Me aproximo da janela. Lá fora, o pequeno lago reflete o céu nublado.
O mato balança ao vento.
É tudo tão quieto…
E ao mesmo tempo tão cheio de possibilidades.
— É estranho. Murmuro.
— O quê?
— Estar num lugar que me pertence, mas que eu nunca habitei.
—Como se eu fosse um estranho na única coisa que sobrou da minha vida.
— Talvez seja aqui que você possa começar de novo. Sem a sombra de ninguém.
—Só com o que você quiser carregar. Clara me diz.
Me sento devagar na poltrona de vime, deixada por algum antigo dono.
Ela range sob meu peso. A dor física está ali, mas é outra que me desmonta:
A do vazio.
Do silêncio.
Do “quase”.
— Eu achei que esse lugar me devolveria a mim mesmo.
—Mas só me mostra o quanto me perdi.
Clara se ajoelha à minha frente, segura minha mão.
— Talvez porque você ainda esteja chegando.
—Aqui…
—E em você.
Ficamos um tempo assim. Depois, com ajuda, me levanto e sigo pelo corredor.
Entro no quarto maior, onde seria o meu refúgio. A cama ainda está por montar, mas a escrivaninha está ali, uma peça antiga que comprei junto com o sítio.
Sobre ela, um caderno de capa de couro. Abro.
Páginas em branco.
Sento à beira da cama desmontada e passo a mão sobre a madeira.
Pela primeira vez em muito tempo, me pergunto o que quero escrever.
Não para os outros.
Para mim!
Sigo até o quarto pequeno ao lado.
Clara o havia preparado para Brenda.
A cama é baixa, os lençóis têm estampa de princesas. Desenhos infantis colorem as paredes:
Um sol amarelo, uma casa torta, três figuras com mãos dadas.
— Ela fez isso ontem à noite. Clara diz, parando na porta.
— Disse que queria te mostrar quando você chegasse.
— E esse aqui sou eu?
— Sim. O papai com capa de super-herói.
—Ela disse que você lutou contra os monstros invisíveis para voltar para casa.
Meus olhos se enchem. Me sento no chão de madeira, sentindo o chão sob mim.
Talvez seja isso:
Voltar ao básico.
Ao contato com algo firme.
— Esse lugar era pra ser um refúgio, agora é o começo de tudo.
—Mas ficou esquecido, congelado.
—Quase virou um fim.
— Ainda pode ser o começo, Miguel. Se você quiser.
— Você acha que eu consigo?
— Não sei. Mas sei que você não precisa fazer tudo sozinho, estamos juntos com você.
—Pode parecer que está só, porém estamos aqui.
— E se eu quiser fazer disso um lar?
—Um de verdade!
— Com ela e com você, se quiser.
Ela não responde com palavras. Apenas se senta ao meu lado, encosta a cabeça no meu ombro. E, naquele silêncio, a resposta é clara.
Mais tarde, Brenda entra correndo e se j**a nos meus braços.
— Papai! Achei meu dinossauro!
—Estava escondido na mochila!
— Que bom, filha. Mas sabe o
que eu achei?
— O quê?
— Um lugar pra gente.
Ela sorri e me abraça forte.
E ali, entre as paredes ainda vazias, entendo:
Não é a casa que estava vazia. Era eu.
E agora…
Estou voltando pra mim!