Eu nasci no meio do fogo cruzado, com cheiro de pólvora no berço e grito de sirene embalando meu sono. Meu nome é Kaíque, e na minha favela, ninguém fala meu nome sem pesar. Sou chefe, frio, calculista, leal só ao meu morro e à minha firma. Até que ela apareceu. Lorena: pele de princesa, olhar de tempestade e a boca que o destino mandou pra me testar. A filha do meu pior inimigo. O sangue dela grita contra o meu, mas o corpo pede beijo. Ela é tudo o que eu não podia ter. Mas eu vou ter. Nem que seja a última coisa que eu faça. Porque nesse jogo, quem manda é o coração. E o meu... é bandido.
Ler maisKaíque "K"
Não nasci em berço de ouro. Nasci em cima de um colchão rasgado, no barraco da minha vó, com cheiro de esgoto subindo pela parede e o grito da sirene da polícia cortando a madrugada. Tinha oito tiros rolando na viela quando minha mãe rompeu a bolsa. E dizem que a primeira coisa que ouvi foi o “pega, pega!” da PM descendo o morro. Era só o começo. Meu nome é Kaíque Silva, mas no morro, me chamam de K. Os de fora tremem só de ouvir. Os de dentro me respeitam. E quem não respeita... aprende da pior forma. Aos quinze, já era braço direito do patrão. Aos dezessete, enterrei ele com dois tiros na nuca. E no dia seguinte, tomei o trono. Não pedi. Peguei. Porque nesse lugar aqui, quem hesita morre. Quem sente, sangra. E quem ama... se fode. Eu aprendi cedo a não confiar em ninguém. Nem em mãe, nem em mulher, nem em amigo. Porque na favela, todo sorriso esconde uma navalha. E eu já tomei muita facada no peito pra sair dando abertura de novo. Meu corre é limpo — dentro da sujeira que a gente vive. Eu comando a parte alta do Morro da Glória. Tudo passa pela minha mão: pó, fuzil, grana, boca, segurança. A favela me vê como rei. Mas eu só me vejo como sobrevivente. Na real? Eu só queria ter tido escolha. Mas isso foi uma parada que ninguém facilitou pra mim. Tava numa dessas manhãs cinzas, céu nublado e sangue fresco escorrendo do beco debaixo, quando vi ela pela primeira vez. Cabelo liso, castanho claro, preso num rabo de cavalo despretensioso. A roupa era simples, mas dava pra ver de longe: ela não era daqui. A bolsa pendurada no ombro custava mais que o aluguel de meia favela. E o jeito que andava... retinha medo, mas também curiosidade. Eu tava no alto, observando o movimento, como sempre. Binóculo de um lado, rádio do outro. Vi ela errando o caminho e descendo a rua errada. A rua que nenhum turista devia pisar. Dois moleques armados já estavam de olho. Novato. Não sabiam quem eu era. Nem aonde tavam pisando. Tavam prontos pra cercar a menina e levar tudo — ou pior. E eu, que nunca meti emoção por ninguém, me levantei. — Fica de olho aí — falei pro Beto, que tava do meu lado. — Qualquer coisa, tu me chama. Desci com a alma quente. Cada passo era como um trovão dentro da cabeça. O beco tava apertado, e ela já começava a sentir o perigo. Mas ainda não corria. Corajosa, ou burra. — Perdeu, princesa — o primeiro vagabundo falou. Vi o cano do revólver reluzir. E a mão dela tremendo, tentando abrir a bolsa. O segundo se aproximou pelas costas. Eram dois filhotes tentando rosnar feito leão. Cheguei devagar. Frio. Imponente. — Baixa a porra do ferro. Eles viraram ao mesmo tempo. Um até apontou pra mim. — Quem é tu pra se meter, ô vacilão? Foi a última frase que ele disse com todos os dentes na boca. Dois socos. Um direto na cara. O outro, no estômago. O primeiro caiu. O segundo correu. E eu fiquei parado, com o peito arfando e a raiva latejando. Ela me olhava como se eu fosse um misto de herói e monstro. Os olhos castanhos arregalados, boca entreaberta, respiração presa. — Tá bem? — perguntei. Ela assentiu, mas não falou nada. Ficou ali, parada, com o coração na mão e o medo no rosto. Era bonita. Muito mais do que devia ser pra estar nesse lugar. — Vem comigo. Não é seguro aqui. Ela hesitou. Olhou em volta. Depois, me seguiu. Sem fazer pergunta. Sem dizer nome. Subimos a rua em silêncio. Só o som dos nossos passos ecoando na favela. No alto, antes de virar o beco principal, ela parou. — Por quê? — Por quê o quê? — Por que você me ajudou? Fitei ela. De perto, era mais linda ainda. Pele clara, boca desenhada, cílios longos. Mas o que mais me prendeu foi o jeito que ela me olhava. Como se eu fosse mais do que o bandido que todo mundo pinta. — Porque eu não gosto de ver covardia. Ela sorriu. Pequeno. Agradecido. E aquele sorriso me bateu no peito de um jeito que eu não sabia explicar. — Qual teu nome? — perguntei. — Lorena. Lorena. O nome ficou rodando na minha cabeça feito música de baile. — E o teu? Demorei pra responder. Era estranho alguém perguntar isso sem medo. Sem tremor. Sem fugir depois. — Kaíque. Mas pode me chamar de K. Ela assentiu. E parou no alto da viela, antes de virar a esquina. O rosto ainda pálido, mas o olhar... firme, direto. Tinha medo ali, mas também tinha alguma coisa a mais. Coragem, talvez. Ou loucura. — Por quê? — ela perguntou, de novo. A voz dela saiu meio trêmula, mas decidida. — Por quê o quê? — retruquei, sem saber se tava pronto pra escutar. — Por que você me ajudou? Franzi o cenho. Dei uma olhada rápida em volta, tentando fugir da pergunta. Mas não dava. Ela me desafiava só com aquele par de olhos castanhos. — Tu acredita mesmo que eles iam só levar tua bolsa? Ela deu de ombros, mas ficou em silêncio. Mordeu o lábio, como se quisesse responder, mas não tivesse certeza. — Um já tava com a mão pronta pra te puxar, o outro com o dedo na arma. Aquilo ali não era só assalto. Era covardia. E eu não deixo passar esse tipo de coisa. Ela deu um passo pra frente. Me encarou. Tava tentando esconder o medo atrás de uma postura durona, mas eu via tudo nos olhos. — Você fala como se me conhecesse. — Não te conheço. Mas conheço o morro. Conheço o tipo de gente que ele tenta devorar. E tu... — dei uma risada seca — cê tava praticamente com uma placa piscando na testa: “presa fácil”. — Arrogante. — Ela jogou, cruzando os braços. — Realista. — Violento. — Só quando preciso. — Perigoso. — Sempre fui. Ela respirou fundo, como se absorvesse cada palavra que eu cuspia. — E mesmo assim me salvou. — Não foi por você. — falei firme. — Foi porque não suporto ver covardia. E, sei lá... tinha algo no teu jeito. Um negócio estranho que me travou por dentro. Ela ficou me olhando em silêncio. Depois soltou num sussurro: — Você tem olhos tristes, Kaíque. Essa frase me acertou mais forte que qualquer tiro que eu já levei. Senti como se ela tivesse rasgado a primeira camada da armadura. Como se tivesse me visto por dentro. — E você tem olhos teimosos demais pra quem pisa num lugar onde até o chão morde. — Eu não sou idiota. — Então por que desceu aquela rua? Ela desviou o olhar. Culpa estampada na cara. — Me disseram que o Centro Comunitário era por aqui. Peguei a rua errada. — Você pegou a rua mais errada possível. Aquela ali nem cachorro late sem permissão. — Agora eu sei. — respondeu, com uma risadinha fraca. Ficamos em silêncio. Mas era um silêncio pesado, cheio de coisa não dita. Dei um passo pra mais perto. — Não volta aqui sozinha. Isso aqui não é passeio turístico. Não é filme. É vida real. E aqui a vida custa caro. Ela ergueu os olhos, e dessa vez veio com ousadia: — E se eu quiser voltar? A pergunta dela me engasgou. A ideia dela aparecendo ali de novo, sozinha, no meio do perigo, me deu uma raiva que eu não entendi. — Aí tu me avisa. Que eu desço de novo. Ela sorriu. Aquele tipo de sorriso que machuca mais que tiro. Porque era sincero. Bonito. De verdade. — Tá bom, K. Ela se virou pra ir embora, mas antes que sumisse de vez, eu chamei: — Lorena. Ela parou. Virou só o rosto. Os fios de cabelo escapando do elástico. A imagem dela ficou marcada na minha mente. — Não é só o morro que engole gente. Eu também posso. Ela sorriu de canto, maliciosa. — Tô avisada. E sumiu na curva, deixando no ar o perfume doce, e a lembrança de um sorriso que, sem querer, me desarmou por dentro. Lorena. A menina que andou no meio do morro como se não tivesse medo de nada. Que olhou no fundo dos meus olhos e me viu além do fuzil. Eu não sabia nada sobre ela. Mas sabia que aquilo ali ia dar ruim. Muito ruim. Porque o coração que pulsa no peito de um bandido... não devia bater por ninguém. Mas o meu começou a bater por ela. E eu sabia: já era.Dez Anos DepoisFavela da Rocinha – Rio de JaneiroSol rachando o cimento, céu azulzão, gritaria de criança ecoando como música da vida— Mããããe, ele me bateu! — berrou Luca, o menor, correndo com o pé descalço e o beiço tremendo, suor escorrendo na testa e uma folhinha grudada no cabelo.— Mentira! Foi sem querer! — respondeu Miguel, com aquela cara safada que só os irmão mais velhos sabem fazer quando tão encobrindo travessura.Lorena saiu na varanda da casa reformada — agora com reboco certo, cerâmica no chão e grade nova pintada de branco — segurando uma toalha e um olhar que sabia o que era viver o inferno e ainda sorrir.— Se quebrar mais um vaso da minha avó, vão catar cocô de cachorro lá na laje do seu Jorge o mês inteiro, ouviram?!Os dois pararam na hora. Se entreolharam. E saíram correndo de novo, rindo alto, a chinela batendo no chão quente, subindo poeira. Futebol na laje era religião. E naquele morro, criança ainda podia ser criança.Kaíque chegou logo atrás. Chinelo arr
Presídio Bangu 1 – Três anos antes da liberdade de Kaíque e LorenaA cela de Jonas Duarte era a última do corredor. Isolado, como um rei derrotado que já não comanda nem as próprias fezes. O tempo, a culpa e os inimigos tinham corroído tudo nele: a pose, o poder, o respeito. Era só mais um. Só mais um nome apagado nas paredes mofadas. Mas do lado de fora, o nome dele ainda fazia eco — e não de admiração, mas de ódio. Porque Jonas não caiu sozinho. Levou parceiros, entregou comparsas, ferrou aliados. E na cadeia, dedo-duro e traidor pagam com carne.Naquela noite, os gritos abafados começaram depois da troca de turno.Ninguém viu.Ninguém quis ver.Três detentos invadiram a cela com faca artesanal feita de escova de dente e lâmina de barbear. Entraram no escuro, com o ódio antigo e a missão encomendada.Jonas nem teve tempo de levantar.O primeiro golpe veio seco, na garganta.Silêncio. Depois, o som da respiração falhando, do corpo se debatendo, do sangue espirrando na parede.— Isso
Cinco Anos DepoisMiguel corria descalço pelo quintal de terra batida, com o joelho ralado, os pés encardidos de pó e o riso solto como quem nunca soube o que é medo. A camisa rasgada no ombro, o cabelo desgrenhado, a alma leve. Naquele riso morava tudo o que a gente sangrou pra conquistar.A casa era pequena. Dois quartos mal rebocados, varanda de cimento rachado, uma antena torta no telhado e o cheiro eterno de café passado no coador de pano. Mas era nossa. E o mais importante: era longe do sangue.Interiorzão do Rio. Cidade tão pequena que mal aparece no mapa, daquelas onde a polícia só passa quando tá perdida ou com vontade de comer coxinha na venda da esquina. Aqui, o silêncio não vem antes do tiro — vem depois da luta.Kaíque vinha chegando da oficina. Uniforme suado, boné torto, mão encardida de graxa e cheiro de trabalho honesto. O peito largo já não carregava pistola, mas ferramenta. Ele tava mais velho, mais marcado, mais homem. Mas os olhos…Ah, os olhos dele tavam limpos.
Cinco Meses DepoisO tempo passou como passa na quebrada: arrastado, desconfiado, sempre esperando o próximo tiro, o próximo baque. Mas, naquela casinha esquecida pela civilização, o mundo lá fora parecia distante.Cinco meses se passaram desde que Kaíque matou o Cobra. Cinco meses de silêncio, de cuidado, de noites mal dormidas e promessas sussurradas. Cinco meses em que minha barriga cresceu como se fosse uma bandeira hasteada dizendo: ainda tem vida aqui, apesar de tudo.O chalé já não cheirava mais a mofo.Cheirava a café pela manhã, a sabonete barato, a esperança improvisada. A gente reformou com o que dava. Kaíque fez conserto no telhado, eu bordei panos velhos pras janelas. Transformamos o abandono em abrigo. Um lar meio torto, mas nosso.E naquela noite, quando a chuva caiu grossa e a luz acabou de vez, eu soube.O bebê ia nascer.A dor veio seca. Crua. Rasgando por dentro como se meu corpo soubesse que a vida só podia vir no grito. Kaíque entrou correndo, suado, ofegante. Tin
LorenaA estrada se estendia como uma ferida aberta, e cada quilômetro que a gente deixava pra trás era mais um pedaço de vida que não voltava. O silêncio dentro do carro era sufocante. Não aquele silêncio leve, de paz. Era o silêncio tenso de quem sabe que ainda não tá salvo. De quem ouve a morte no retrovisor.Kaíque dirigia com uma mão só, a outra pressionando o ombro encharcado de sangue já seco. A camisa colada na pele, o rosto pálido, os olhos fixos na pista. O cheiro de ferro impregnava o carro, misturado com o suor do medo e da adrenalina que ainda grudava na pele da gente. Eu queria gritar. Chorar. Rasgar o mundo no meio.Mas não podia.Porque se eu desmoronasse ali, ele vinha junto. E se a gente caísse, não levantava mais.A gente não tinha pra onde ir. O barraco da Dona Lurdes já era. A favela, um campo minado onde o tráfico e a milícia trocavam tiro como quem troca "bom dia". Lá, não existia mais espaço pra nós. Nem pra erro. Nem pra sonho.Fomos rumo à serra. A estrada er
KaíqueEu tentei correr. Tentei apagar o passado com fuga, silêncio e esperança. Tentei recomeçar, mas a rua me ensinou que guerra não tem pausa. Ela te encontra até no esconderijo mais longe.O nome dele corrói por dentro igual ácido: Cobra.Traíra. Falso. Judas de fuzil.Cresceu do meu lado, mamou do mesmo barraco, dividiu o último arroz, segurou arma comigo nos beco da vida… e depois tentou me apagar. Me enterrar vivo. Como se eu fosse lixo.Mas lixo é ele.E agora ele tá atrás de mim. Atrás da Lorena. E do nosso filho.Vai pagar. Com sangue. Com cada osso quebrado. Com cada lágrima que ela já derramou por minha causa.O dia nem tinha clareado quando eu abri o olho. Lorena dormia colada em mim, o corpo cansado, mas sereno. O rosto encostado no meu peito, os cabelos bagunçados, a respiração leve… e a barriga dela já denunciando o futuro. Ali dentro, tá meu mundo. Minha redenção. Meu pedaço mais puro.Eu pensei em sair calado. Ir resolver essa guerra sozinho. Mas, quando fui levantar
Último capítulo