O Reencontro no Silêncio

Lorena

Fui criada no luxo, mas não nasci burra.

Aprendi cedo que o mundo dos negócios do meu pai não era limpo como ele dizia. Mas também aprendi a fingir que acreditava. Porque quando a verdade dói mais do que a mentira, a gente escolhe o que machuca menos.

Só que depois daquele dia... daquele olhar... nada mais fazia sentido.

Kaíque.

Um nome simples pra um homem cheio de sombra. E eu? Eu fui burra de pensar que aquele encontro tinha sido só sorte. Agora eu sabia. Ele era o dono daquele lugar. O homem por trás da fama. O tipo que meu pai dizia pra eu nunca sequer olhar na rua.

Mas eu olhei.

E pior: gostei do que vi. … e desejei o que não devia.

Não era só a postura dele, o jeito como calava um ambiente inteiro com um olhar. Não era só a arma na cintura nem os músculos marcados sob a camisa preta manchada de sangue. Era mais. Era o silêncio que ele carregava, como se cada passo dele fosse uma escolha calculada. Era a forma como ele me olhou sem medo, sem pedir licença, mas também sem invadir.

Foi ali que minha cabeça virou um campo de batalha. De um lado, a filha certinha de Jonas Duarte, treinada pra sorrir em coquetéis e manter a pose. Do outro, a mulher que tremia de emoção lembrando do tom rouco da voz de Kaíque dizendo: “Tá bem?”.

Por que aquilo ficou martelando tanto na minha mente? Por que aquela pergunta simples, seca, mexeu tanto comigo?

Porque ninguém nunca perguntou se eu tava bem de verdade.

E talvez... talvez ele tenha sido o primeiro a enxergar além do salto alto, da bolsa cara e do sobrenome poderoso. Ele viu o medo nos meus olhos, mas não me tratou como vítima. Me tratou como alguém que valia ser protegida.

E isso, pra mim, foi devastador.

Eu sabia o que Kaíque era. Sabia da ficha criminal, dos boatos, das fotos borradas em pastas confidenciais que eu vi escondido no escritório do meu pai. Ele era o inimigo. O erro. O perigo.

Mas no fundo... eu também sabia que o verdadeiro perigo era o que eu sentia.

Era o coração acelerado quando pensava nele.

Era a forma como repassava aquela cena na minha mente, como se cada segundo tivesse sido tatuado na minha pele.

Era o arrepio que subia pelas costas quando lembrava da tensão entre nós dois — densa, crua, inegável.

O problema não era Kaíque.

Era o que eu tava disposta a arriscar por ele.

...Minha segurança.

...Minha sanidade.

...Minha lealdade.

Porque quanto mais eu tentava esquecer, mais ele voltava. No cheiro da camisa que usei naquele dia. No sonho estranho que me acordou suada de madrugada. No eco do nome dele quando o cara do telefone falou “o K viu”.

K.

Aquela letra virou obsessão.

E eu me odiava por isso. Porque no fundo, eu sabia... Eu não fui só salva. Fui marcada. E agora não tinha mais volta.

Eu tava envolvida até o pescoço.

Entre o sangue dos inimigos do meu pai e o olhar de um homem que podia destruir tudo que eu conhecia.

E o mais assustador?

Uma parte de mim queria ser destruída.

Só pra ver o que ele colocaria no lugar.

Tentei seguir a vida, voltei pra minha rotina fingida. Ioga de manhã, reunião de fachada à tarde, jantar com meu pai e os sócios à noite. Só que dentro de mim, tudo tava virado. Eu não conseguia esquecer os olhos dele. O jeito firme. A forma como me salvou e depois sumiu, como se eu não fosse nada. Ou tudo.

Mas aí veio a bomba.

Meu pai entrou no meu quarto sem bater. Tava com cara de quem não dormiu.

— Você falou com alguém lá no morro? — ele perguntou direto.

Tentei manter a calma.

— Só com o homem que me ajudou.

— Quem?

— Ele disse que o nome era K.

O silêncio dele me deu náusea. Vi o rosto do meu pai perder a cor.

— Kaíque?

Assenti devagar, já sabendo que a resposta ia doer.

— E aí?

Ele passou a mão na testa, andou de um lado pro outro. Depois me olhou com raiva, mas também com medo.

— Esse homem... é o maior inimigo que eu tenho. Ele me odeia. Odeia nossa família. Se ele souber quem você é... Lorena, ele pode te matar.

O coração disparou, mas não foi de medo.

Foi de outra coisa.

Porque eu sabia, no fundo, que ele já sabia quem eu era. E não fez nada. Nem um arranhão. Só me olhou.

— Ele não vai me machucar — falei, sem nem entender de onde tirei tanta certeza.

— Você não entende! — meu pai gritou. — Ele é um criminoso, um assassino. Ele quer vingança!

Engoli em seco.

— E você, pai? Você é o quê?

A mão dele quase voou em mim. Mas ele se segurou. Nunca tinha me batido, mas naquele dia, acho que pela primeira vez, quis.

Ele saiu do quarto batendo a porta.

Eu fiquei ali. Tremendo. Cansada de viver numa mentira de luxo e medo.

Naquela noite, decidi fazer o que ninguém esperava de mim.

Voltei pra favela.

Sozinha.

No mesmo Uber. Com o coração na boca. E uma coragem que não sabia que existia.

Dessa vez, não me perdi. Fui direto até a rua onde tudo começou. Os moleques me olharam de lado, como se vissem um fantasma.

— É a patricinha do outro dia — sussurrou um.

— Ih, vai dar merda — disse outro.

Mas eu continuei. Sem parar. Sem correr.

No fim da rua, ele apareceu. De novo. Como se sentisse que eu vinha.

Kaíque.

De moletom preto, corrente no pescoço, e o mesmo olhar que me desmontou da primeira vez. Só que agora... ele sabia. E eu também.

A tensão era tanta que o ar parecia pesado.

— Você tem coragem — ele disse, devagar, quase num sussurro.

— Eu precisava te ver.

Ele não respondeu.

Só me encarou. E foi aí que eu vi. Ele tava lutando com ele mesmo. A raiva e a curiosidade dançando no rosto dele como dois inimigos no ringue.

— O que você quer, Lorena?

— Saber a verdade.

— Que verdade?

— Por que você me deixou sair viva daquele beco.

Ele sorriu. De lado. Mas não era deboche. Era dor.

— Porque eu vi sua mãe nos teus olhos.

Aquilo me desmontou por dentro.

— Você conheceu minha mãe?

— Antes dela se casar com o Jonas, ela frequentava a comunidade. Ajudava na creche. Era amiga da minha mãe. Até que sumiu. E quando voltou... tava com aliança no dedo e carro blindado.

Fiquei sem palavras.

Minha mãe morreu quando eu tinha oito anos. Nunca soube direito o passado dela. Meu pai nunca falou.

— Ela era boa — ele continuou. — Diferente do lixo com quem casou.

— Ele te machucou, né?

Kaíque riu. Um riso amargo.

— Seu pai destruiu minha família. Mandou matar meu pai. Plantou arma na casa da minha mãe e fez ela ir presa. Eu cresci com ódio no peito. E você... apareceu no meu beco com o mesmo sangue.

Uma lágrima escorreu sem pedir permissão.

— Eu não sou ele.

— Não é — ele admitiu. — E é isso que me fode.

Silêncio.

Os dois parados no meio da favela, com a cidade lá embaixo brilhando como se não existisse guerra entre nós. Mas existia.

Só que tinha uma coisa maior. Mais perigosa.

Desejo.

— Por que você voltou aqui, Lorena?

— Porque eu não consegui te tirar da cabeça. E porque eu sei que você também sente.

Ele não disse nada.

Só se aproximou devagar. O rosto perto do meu. O cheiro dele misturado com o calor da noite. O coração batendo como tambor de escola de samba.

— Isso é loucura — ele murmurou.

— Eu sei.

E a boca dele encostou na minha.

O beijo não foi doce.

Foi bruto.

Foi um erro.

Mas eu juro... foi o melhor erro da minha vida.

Foi como acender um fósforo num campo de pólvora.

O beijo dele não pediu licença — invadiu, tomou, consumiu. A boca dele era fome, era raiva, era tudo o que ele guardava atrás daquele olhar frio e daquela postura de dono do mundo. E eu? Eu me desfiz inteira.

Naquele instante, tudo o que eu era — filha de Jonas Duarte, garota de Ipanema, mulher criada no luxo — virou fumaça. Porque no gosto da boca de Kaíque, eu não era nada disso. Eu era só carne, sangue e desejo.

As mãos dele seguraram minha cintura como se quisessem marcar território. Como se dissessem “daqui você não sai mais”. E eu não queria sair. Eu queria mais. Eu queria me perder. Queria me afundar naquele momento e nunca mais lembrar do mundo.

O beijo era urgente, como se a gente estivesse tentando arrancar do outro uma resposta que não vinha com palavras. Língua, dente, suspiro. Era guerra e entrega. Era tudo ao mesmo tempo.

Eu tremia, mas não de medo. Era o corpo reagindo à loucura que era estar nos braços de um homem que podia me arruinar — e mesmo assim, era ali que eu me sentia mais viva.

— Kaíque… — murmurei entre um suspiro e outro, tentando recuperar o fôlego, mas ele não deixou.

Me puxou de novo, como se o mundo fosse acabar e só aquele beijo pudesse nos manter vivos. Como se cada parte de nós gritasse pelo que a gente não podia ter, mas não conseguia negar.

O calor dele queimava minha pele, mesmo sem tirar minha roupa. A mão grande subiu pelas minhas costas, agarrou meu cabelo com força, e quando ele me olhou nos olhos de novo, foi como se me atravessasse por dentro.

— Você não tem noção do que tá fazendo, Lorena — ele disse, a voz rouca, carregada de um controle que por pouco não se rompia.

— Tenho, sim — respondi, com os lábios vermelhos dele ainda nos meus. — Tô me jogando no abismo. E o pior… é que eu quero.

Ele grunhiu baixo, como se a minha resposta fosse a última gota de sanidade caindo fora.

E aí, o beijo voltou. Mais forte. Mais selvagem. Mais nós. Porque naquele momento não existia Jonas Duarte. Não existia tráfico, favela, rivalidade, perigo.

Só existia eu. Só existia ele. E esse amor bandido, sujo e lindo, nascendo no meio do caos.

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