Coração Bandido – Morro –
Coração Bandido – Morro –
Por: Sandra Lima Autora
Nasci no Fogo

Kaíque "K"

Não nasci em berço de ouro. Nasci em cima de um colchão rasgado, no barraco da minha vó, com cheiro de esgoto subindo pela parede e o grito da sirene da polícia cortando a madrugada. Tinha oito tiros rolando na viela quando minha mãe rompeu a bolsa. E dizem que a primeira coisa que ouvi foi o “pega, pega!” da PM descendo o morro.

Era só o começo.

Meu nome é Kaíque Silva, mas no morro, me chamam de K. Os de fora tremem só de ouvir. Os de dentro me respeitam. E quem não respeita... aprende da pior forma.

Aos quinze, já era braço direito do patrão. Aos dezessete, enterrei ele com dois tiros na nuca. E no dia seguinte, tomei o trono. Não pedi. Peguei. Porque nesse lugar aqui, quem hesita morre. Quem sente, sangra. E quem ama... se fode.

Eu aprendi cedo a não confiar em ninguém. Nem em mãe, nem em mulher, nem em amigo. Porque na favela, todo sorriso esconde uma navalha. E eu já tomei muita facada no peito pra sair dando abertura de novo.

Meu corre é limpo — dentro da sujeira que a gente vive. Eu comando a parte alta do Morro da Glória. Tudo passa pela minha mão: pó, fuzil, grana, boca, segurança. A favela me vê como rei. Mas eu só me vejo como sobrevivente.

Na real? Eu só queria ter tido escolha. Mas isso foi uma parada que ninguém facilitou pra mim.

Tava numa dessas manhãs cinzas, céu nublado e sangue fresco escorrendo do beco debaixo, quando vi ela pela primeira vez.

Cabelo liso, castanho claro, preso num rabo de cavalo despretensioso. A roupa era simples, mas dava pra ver de longe: ela não era daqui. A bolsa pendurada no ombro custava mais que o aluguel de meia favela. E o jeito que andava... retinha medo, mas também curiosidade.

Eu tava no alto, observando o movimento, como sempre. Binóculo de um lado, rádio do outro. Vi ela errando o caminho e descendo a rua errada. A rua que nenhum turista devia pisar.

Dois moleques armados já estavam de olho. Novato. Não sabiam quem eu era. Nem aonde tavam pisando. Tavam prontos pra cercar a menina e levar tudo — ou pior. E eu, que nunca meti emoção por ninguém, me levantei.

— Fica de olho aí — falei pro Beto, que tava do meu lado. — Qualquer coisa, tu me chama.

Desci com a alma quente. Cada passo era como um trovão dentro da cabeça. O beco tava apertado, e ela já começava a sentir o perigo. Mas ainda não corria. Corajosa, ou burra.

— Perdeu, princesa — o primeiro vagabundo falou.

Vi o cano do revólver reluzir. E a mão dela tremendo, tentando abrir a bolsa. O segundo se aproximou pelas costas. Eram dois filhotes tentando rosnar feito leão.

Cheguei devagar. Frio. Imponente.

— Baixa a porra do ferro.

Eles viraram ao mesmo tempo. Um até apontou pra mim.

— Quem é tu pra se meter, ô vacilão?

Foi a última frase que ele disse com todos os dentes na boca.

Dois socos. Um direto na cara. O outro, no estômago. O primeiro caiu. O segundo correu. E eu fiquei parado, com o peito arfando e a raiva latejando.

Ela me olhava como se eu fosse um misto de herói e monstro. Os olhos castanhos arregalados, boca entreaberta, respiração presa.

— Tá bem? — perguntei.

Ela assentiu, mas não falou nada. Ficou ali, parada, com o coração na mão e o medo no rosto. Era bonita. Muito mais do que devia ser pra estar nesse lugar.

— Vem comigo. Não é seguro aqui.

Ela hesitou. Olhou em volta. Depois, me seguiu. Sem fazer pergunta. Sem dizer nome.

Subimos a rua em silêncio. Só o som dos nossos passos ecoando na favela.

No alto, antes de virar o beco principal, ela parou.

— Por quê?

— Por quê o quê?

— Por que você me ajudou?

Fitei ela. De perto, era mais linda ainda. Pele clara, boca desenhada, cílios longos. Mas o que mais me prendeu foi o jeito que ela me olhava. Como se eu fosse mais do que o bandido que todo mundo pinta.

— Porque eu não gosto de ver covardia.

Ela sorriu. Pequeno. Agradecido. E aquele sorriso me bateu no peito de um jeito que eu não sabia explicar.

— Qual teu nome? — perguntei.

— Lorena.

Lorena. O nome ficou rodando na minha cabeça feito música de baile.

— E o teu?

Demorei pra responder. Era estranho alguém perguntar isso sem medo. Sem tremor. Sem fugir depois.

— Kaíque. Mas pode me chamar de K.

Ela assentiu. E parou no alto da viela, antes de virar a esquina. O rosto ainda pálido, mas o olhar... firme, direto. Tinha medo ali, mas também tinha alguma coisa a mais. Coragem, talvez. Ou loucura.

— Por quê? — ela perguntou, de novo. A voz dela saiu meio trêmula, mas decidida.

— Por quê o quê? — retruquei, sem saber se tava pronto pra escutar.

— Por que você me ajudou?

Franzi o cenho. Dei uma olhada rápida em volta, tentando fugir da pergunta. Mas não dava. Ela me desafiava só com aquele par de olhos castanhos.

— Tu acredita mesmo que eles iam só levar tua bolsa?

Ela deu de ombros, mas ficou em silêncio. Mordeu o lábio, como se quisesse responder, mas não tivesse certeza.

— Um já tava com a mão pronta pra te puxar, o outro com o dedo na arma. Aquilo ali não era só assalto. Era covardia. E eu não deixo passar esse tipo de coisa.

Ela deu um passo pra frente. Me encarou. Tava tentando esconder o medo atrás de uma postura durona, mas eu via tudo nos olhos.

— Você fala como se me conhecesse.

— Não te conheço. Mas conheço o morro. Conheço o tipo de gente que ele tenta devorar. E tu... — dei uma risada seca — cê tava praticamente com uma placa piscando na testa: “presa fácil”.

— Arrogante. — Ela jogou, cruzando os braços.

— Realista.

— Violento.

— Só quando preciso.

— Perigoso.

— Sempre fui.

Ela respirou fundo, como se absorvesse cada palavra que eu cuspia.

— E mesmo assim me salvou.

— Não foi por você. — falei firme. — Foi porque não suporto ver covardia. E, sei lá... tinha algo no teu jeito. Um negócio estranho que me travou por dentro.

Ela ficou me olhando em silêncio. Depois soltou num sussurro:

— Você tem olhos tristes, Kaíque.

Essa frase me acertou mais forte que qualquer tiro que eu já levei. Senti como se ela tivesse rasgado a primeira camada da armadura. Como se tivesse me visto por dentro.

— E você tem olhos teimosos demais pra quem pisa num lugar onde até o chão morde.

— Eu não sou idiota.

— Então por que desceu aquela rua?

Ela desviou o olhar. Culpa estampada na cara.

— Me disseram que o Centro Comunitário era por aqui. Peguei a rua errada.

— Você pegou a rua mais errada possível. Aquela ali nem cachorro late sem permissão.

— Agora eu sei. — respondeu, com uma risadinha fraca.

Ficamos em silêncio. Mas era um silêncio pesado, cheio de coisa não dita. Dei um passo pra mais perto.

— Não volta aqui sozinha. Isso aqui não é passeio turístico. Não é filme. É vida real. E aqui a vida custa caro.

Ela ergueu os olhos, e dessa vez veio com ousadia:

— E se eu quiser voltar?

A pergunta dela me engasgou. A ideia dela aparecendo ali de novo, sozinha, no meio do perigo, me deu uma raiva que eu não entendi.

— Aí tu me avisa. Que eu desço de novo.

Ela sorriu. Aquele tipo de sorriso que machuca mais que tiro. Porque era sincero. Bonito. De verdade.

— Tá bom, K.

Ela se virou pra ir embora, mas antes que sumisse de vez, eu chamei:

— Lorena.

Ela parou. Virou só o rosto. Os fios de cabelo escapando do elástico. A imagem dela ficou marcada na minha mente.

— Não é só o morro que engole gente. Eu também posso.

Ela sorriu de canto, maliciosa.

— Tô avisada.

E sumiu na curva, deixando no ar o perfume doce, e a lembrança de um sorriso que, sem querer, me desarmou por dentro.

Lorena.

A menina que andou no meio do morro como se não tivesse medo de nada. Que olhou no fundo dos meus olhos e me viu além do fuzil.

Eu não sabia nada sobre ela. Mas sabia que aquilo ali ia dar ruim. Muito ruim.

Porque o coração que pulsa no peito de um bandido... não devia bater por ninguém.

Mas o meu começou a bater por ela.

E eu sabia: já era.

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