Lorena
Eu sabia que não devia estar ali. Desde o momento que o Uber me largou no ponto errado, senti o peso do lugar. O cheiro da rua, o olhar desconfiado da senhora que fechou o portão na minha cara, os moleques encostados no poste rindo alto demais. O Rio sempre foi cheio de contrastes, mas ali... era outro mundo. Meu coração batia acelerado. Cada passo era um erro. Cada esquina, um risco. Mas eu precisava chegar naquele endereço. Era importante. Era urgente. Meu pai confiava em mim. Ironia, né? Ele sempre fez questão de me manter longe desse tipo de ambiente. Sempre disse: “Lorena, favela não é lugar pra mocinha de apartamento.” Mas agora, justo ele, me manda ali com um envelope pesado de segredos. Eu tava com medo. Um medo que não conhecia. Não era o medo de prova, de entrevista, de falar em público. Era um medo físico. Real. Primário. Instintivo. Um medo que fazia as mãos suarem, o estômago se contrair e a mente repetir, como um mantra: Você não devia estar aqui. E então eu me perdi. Peguei a rua errada, e o mundo desabou E eles apareceram. Dois meninos, nem pareciam ter vinte anos. Roupas largas, olhar afiado, postura de quem não tem nada a perder. Um deles ergueu a arma como quem oferece um cumprimento. O outro sorriu. Aquele sorriso nojento, de quem sente prazer em ver medo nos olhos dos outros. Minha bolsa quase caiu da mão. Tentei manter a calma. Já tinham me ensinado o que fazer em caso de assalto. Entrega tudo. Não reage. Fica viva. Mas aí ele chegou. Do nada. Alto. Forte. Olhos intensos. Voz grave. Ele não gritou. Não precisou. Sua presença bastava. Era como se o chão tivesse ganhado peso sob seus pés. — Baixa a porra do ferro. E o tempo parou. Os dois recuaram na hora. Um ainda tentou bater de frente. Coitado. O queixo dele deve estar no chão até agora. E eu? Eu fiquei ali. Paralisada. O coração batendo como um tambor de guerra. As pernas bambas. O corpo inteiro tremendo, não só de medo, mas de choque, de alívio, de adrenalina, de algo que eu não sabia nomear. E aquele homem... aquele homem era diferente. Era bruto. Perigoso. Mas também parecia... certo. Me salvou sem pedir nada. Me olhou sem invadir. Me guiou sem tocar. — Tá bem? Quis responder, mas minha garganta era um deserto. Apenas assenti, tentando não desmoronar ali mesmo. Segui ele como quem agarra uma corda num naufrágio. Não sabia pra onde ele me levava, mas sabia que onde ele estivesse, eu não ia morrer. Era irracional, mas era real. Pela primeira vez desde que desci do Uber, me senti protegida. E isso... isso me quebrou por dentro. Quando perguntei por que ele me ajudou, esperava uma resposta qualquer. Uma grosseria, uma cobrança, um "se liga, garota". Mas o que ele disse foi: — Porque eu não gosto de ver covardia. Foi a primeira rachadura que vi na casca grossa dele. Depois, disse que se chamava Kaíque. Mas que podia chamar de K. K. Um nome curto demais pra tanto impacto. Um nome que ecoou na minha mente o caminho inteiro de volta pra casa. Como se eu tivesse visto um filme inteiro nos olhos dele. E ali, naquela viela escura, entre lixo e sangue fresco no chão, eu senti algo que nunca tinha sentido na vida: curiosidade real por alguém. Mas quando cheguei no meu apartamento em Ipanema, tudo voltou ao normal. Ou deveria ter voltado. Tirei os sapatos, joguei a bolsa no sofá, e fui direto pro espelho. Meu reflexo parecia diferente. Não era o cabelo bagunçado nem o suor grudado na pele. Era o olhar. Tinha alguma coisa ali que não tava antes. Alguma coisa que o tal do K deixou. — Lorena, você é louca — falei pra mim mesma. Só podia ser. Tava envolvida num esquema sujo do meu pai, andando sozinha no morro, sendo salva por um traficante que mais parecia personagem de série criminal... e o pior: achando ele interessante. Eu não sabia quem era Kaíque. Mas soube na hora que ele não era qualquer um. Na manhã seguinte, ouvi meu pai berrando no telefone logo cedo. — Como assim ela errou o caminho? Como deixaram isso acontecer? Ele tava puto. E com razão. — Eu falei pra não mandar ela! — a voz do outro lado respondeu. — A menina é fresca, não conhece o esquema! Fiquei escutando da cozinha. Silenciosa. Engolindo o café com gosto de culpa. — Não interessa. Ela já foi. Tá viva, não tá? Agora me diz: o K viu? Meu coração gelou. Eles sabiam quem ele era. — Viu — respondeu o homem no telefone. — E salvou ela. Acredita? O silêncio que veio depois foi mais assustador do que qualquer grito. — Merda... Eu subi pro quarto e tranquei a porta. Sentei na cama e encarei o envelope que tava na minha bolsa. Ainda lacrado. Ainda cheio de perguntas. O nome na frente? Cláudio Santos. O maior inimigo do meu pai. O cara que ele mais odeia no mundo. O responsável por trair a confiança da nossa família — ou é o que meu pai diz. Mas aí vem a pergunta que não quer calar: se ele odeia tanto o cara, por que mandaria a própria filha entregar uma mensagem pra ele, escondido? E mais: por que esse envelope teve que ser entregue ali, naquela favela, naquele morro, naquele território... onde reina Kaíque? Comecei a montar o quebra-cabeça na cabeça. E tudo começou a fazer sentido demais. Kaíque. Cláudio Santos. Meu pai. Tráfico. Mentiras. E eu no meio. Senti o estômago revirar. Não podia estar me metendo num jogo tão sujo assim. Mas já tava. E o pior... meu coração batia forte toda vez que lembrava daquele olhar firme, daquela voz grossa, daquela forma que ele me protegeu. Como se eu fosse importante. Mesmo sem ele saber quem eu era. Se ele soubesse... Se ele soubesse que eu sou Lorena Duarte, filha do Jonas Duarte, o homem que mandou matar metade dos aliados dele há cinco anos, talvez ele nem tivesse me deixado sair viva do morro. Por que me salvar se eu sou filha do maior inimigo do morro? Talvez ele ainda não saiba. Ou talvez saiba... e só esteja esperando a hora certa. Mas se for isso, por que meu coração não para de bater desse jeito toda vez que penso nele? Kaíque mexeu comigo de um jeito que ninguém jamais fez. E isso é perigoso. Muito mais perigoso do que qualquer arma apontada pra minha cara. Porque agora... agora não é só o envelope que tá cheio de segredos. Sou eu. Eu também sou um segredo prestes a explodir.