Kaíque
Desde o dia que vi a Lorena, minha cabeça não teve sossego. Nunca aconteceu uma coisa dessas na minha vida. Até porque desde moleque fiz uma jura a mim mesmo, mulher só teria uma serventia, depois pente e rala pra geral. Mas essa garota surgiu feito uma ebulição. Ela apareceu como um raio no morro, rápida, bonita, perigosa e mortal — não só pra ela, mas pra mim também. Porque mulher assim não pisa onde pisa por acaso. E eu já vivi demais pra acreditar em coincidência. E Lorena poderia ser tudo, menos um acaso. E isso mexeu demais comigo, e me deixou encucado. Porra! Era só o que me faltava acontecer. Do nada surgir uma tentação que pode ser capaz de me tirar dos trilhos, justamente agora que as paradas estavam suaves por aqui e meus planos de alavancar os negócios está mais perto do que nunca. Mulher é sinal de problema, e aquela dali é problema ao cubo. Ergo o boné e coço a cabeça. Respiro fundo e observo o movimento. A favela é viva, respira. Nada acontece aqui sem que eu saiba. E aquele dia, aquele horário, aquele beco... tudo errado. Os meninos da base juram que foi sem querer. Que ela só se perdeu. Mas eu não acredito em erro de GPS quando o destino é o coração do meu território. Tem alguma coisa errada nisso tudo, uma parada que não tá encaixando e eu preciso descobrir o que é. Caso contrário, posso está correndo o risco de levar uma rasteira sem ter tempo de me defender. Passei a noite encostado na grade da laje, vendo o céu escuro, ouvindo o rádio da segurança zumbir, mas sem prestar atenção em nada. Só pensava nela. No jeito que me olhou. No “obrigada” não falado. E principalmente no nome. Lorena. Curioso, doce demais pro lugar onde ela tava. Aí tem coisa... Só não sabia afirmar se era boa ou ruim... Mas isso eu vou descobrir ligeiro. No outro dia, fui atrás. Sem fazer alarde. Sempre fui de agir na surdina, e por isso tô nesse patamar, me tornando o cabeça desse morro. Chamei um dos moleques da escuta: — Vê se alguém sabe quem é a novinha que desceu a Rua Quente ontem à tarde. Cabelo castanho, rabo de cavalo, blusa branca, mochila preta. E fala pra puxar câmera de ponto comercial ali por perto. De olhos fechados eu conseguia descrever aquela mulher. Uma parada louca que já estava me deixando agoniado. Em menos de duas horas, tive a resposta. — Ela veio de Ipanema, patrão. Desceu do Uber, andou três ruas, entrou na Quente e depois sumiu. E tem mais: no envelope que tava na bolsa dela, tinha nome marcado. Cláudio Santos. Meu sangue ferveu. Cláudio Santos. Meu inimigo. O cara que mandou meu pai pro cemitério e minha mãe pra cadeia. O cara que tentou me apagar quando eu ainda era só um moleque vendendo doce no portão da escola. — Onde tá esse Cláudio agora? — perguntei. — Desaparecido há meses, chefe. Dizem que tá morando em Santa Cruz, escondido. Puxei o ar com força. Tentei não estourar ali mesmo. E ela? Ela tava levando um envelope pro desgraçado do Cláudio? A novinha do olhar doce e boca tímida? Meu corpo dizia pra esquecer. Pra fingir que não aconteceu. Mas minha mente já tinha ido longe demais. Se ela tá com esse cara, tá contra mim. E se tá contra mim... não pode ficar andando por aí. A minha vontade era liquidar essa porra o quanto antes, mas algo me travava. O jeito que ela me olhou. Como se me visse de verdade. Ninguém me olha assim. Nem minha sombra. Eu já fui tudo nessa vida: filho da empregada, aluno expulso, ladrão de mercado, fogueteiro, gerente de boca, patrão. Já fui chamado de lixo e de rei. Mas nunca... nunca alguém me olhou como ela olhou. Sem medo. Sem filtro. Como se tivesse tentando entender quem eu sou por trás da fama. E isso me quebrou. A tarde caiu, e eu fui até o salão da Tia Cida, onde as fofocas da favela nascem. Cheguei quieto, sem chamar atenção. Mas é claro que todo mundo notou. — Opa, K. Vai cortar o cabelo hoje? — a Cida sorriu com os olhos. Sabia que eu nunca entrava ali só por corte. — Só vim trocar ideia. Sentei no sofá de canto. Enquanto tomava uma gelada, aguardei ela terminar de atender uma cliente. Quando ficou livre, joguei a real. — Ontem teve uma menina perdida aqui no morro. Tô achando que foi de propósito. Alguém que tava com envelope pro Cláudio Santos. Cida arregalou o olho. Eu sabia que aquela doida não tava perdida porra nenhuma. Uma patricinha daquela perdida justamente na minha favela? Conversa pra otário cair, e se tem uma parada que nunca fui é lesado. — Que menina? — Nome dela é Lorena. Cabelo liso, magrinha, bonita. Veio da Zona Sul. Jogo a real e analiso o jeito da tia. Ela pensou um pouco. Mexeu no celular. Depois levantou os olhos pra mim e mostrou a imagem que tinha na tela: — K... Lorena Duarte? Meus punhos fecharam na hora. O meu maxilar trava. E o meu sangue ferve. Duarte. Esse sobrenome eu conheço como conheço o gosto do sangue na boca. Jonas Duarte. Dono de empresa de segurança. Ex-policial. Peça podre que se esconde atrás de terno caro. O homem que limpou minha favela de aliados quando eu ainda tava comendo pão murcho da cantina. E o mesmo que, até onde sei, botou preço na minha cabeça. Lorena era filha dele. Senti um gosto metálico na garganta. Parte de mim queria sair dali quebrando tudo. A outra parte... ficou muda. Travada. Porque não fazia sentido. O que a filha do meu maior inimigo tava fazendo no meu território? E por que eu — que já apaguei gente só por pensar em me trair — não consegui encostar um dedo nela? Saí do salão sem dizer nada. Subi a viela, sentei na laje e fiquei encarando a cidade lá embaixo. As luzes dos prédios piscando, os carros buzinando, gente vivendo suas vidas sem saber que, naquele momento, um bandido tava com o coração em guerra. Pela primeira vez em anos, eu não sabia o que fazer. Matar ou proteger? Odiar ou desejar? Ela é filha de quem destruiu minha vida... mas também é a única que me olhou como homem e não como monstro. O coração que eu aprendi a manter enterrado começou a bater mais forte. E aí eu soube. Não ia dar pra fugir.