Filha de um pai fanático, cresci entre orações e castigos, entre a santidade da minha irmã e os desejos que eu nunca consegui silenciar. Durante anos, a fé distorcida que reinava dentro da minha casa foi meu maior cárcere. Eu acreditava que nada poderia ser pior do que viver sob o peso da culpa, dos sermões e da vigilância constante… até o dia em que fui sequestrada. De repente, meu mundo de penitência e silêncio se transformou em um abismo de medo, dor e tentação. Agora, entre mãos que me prendem e olhos que me devoram, não existe mais certo ou errado. Existe apenas sobrevivência. E, no meio da escuridão, descobri algo ainda mais perigoso: a tentação de ceder. De me perder. De me entregar. Principalmente depois dele… Luka.
Leer másTalvez meu primeiro pecado tenha sido nascer.É um pensamento exagerado. Até mesmo doentio. Mas quando se cresce numa casa onde até o jeito de andar pode ser uma ofensa a Deus, você começa a se perguntar se a sua própria existência não é uma afronta.
Às vezes, eu me pergunto se Deus me queria mesmo aqui. Ou se ele só me aturou. A primeira vez que pensei isso, eu tinha doze anos. Mas foi anos depois aos dezessete que esse pensamento ganhou gosto de verdade, com gosto de beijo amargo e sal de lágrima. — E aí, vai querer ou não? — A voz dele soou impaciente, como se eu estivesse atrasando o cronograma dele. Rafael, o garoto mais babaca do colégio, bonito demais para o seu próprio bem, estava encostado na estrutura de ferro da arquibancada como se fosse o dono do lugar. Meu coração pulou no peito, mas não por ele. Por mim. Pelo pavor. Pelo desejo de não ser uma aberração. Respirei fundo, tentando parecer segura. Como as meninas da minha sala, que falavam de “ficar” com a mesma naturalidade com que pediam um lápis. Meninas que cochichavam sobre mim nos corredores: “Ela nunca beijou ninguém, sabia?” “Deve ser virgem até hoje, credo.” “Com aquele pai? Capaz de rezar dez ave-marias se alguém encostar nela.” Talvez beijar o Rafael fosse minha chance de ser um pouco mais normal. Mesmo que fosse só por alguns minutos. Mesmo que ele fosse um idiota. — Quero. — disse, e minha voz falhou no meio da palavra. Engasguei na garganta. Arregalei os olhos, tentando disfarçar, mas ele soltou um riso curto, sarcástico. — Então vem logo. Aproximei-me devagar, com o estômago embrulhado. O cheiro de madeira úmida e suor adolescente me envolveu. O coração parecia um tambor dentro do peito, tão alto que eu mal ouvia meus pensamentos. Estávamos embaixo da arquibancada vazia, durante o intervalo da tarde, escondidos de tudo ou pelo menos era o que eu esperava. Ele não hesitou. Não perguntou se eu estava pronta. Só puxou meu rosto com uma mão meio áspera e encaixou a boca na minha. Foi horrível. Primeiro, a gente bateu os dentes. Literalmente. Um estalo seco que me fez arregalar os olhos. — Porra — ele murmurou, impaciente, se afastando meio centímetro. — Abre a boca direito. Senti o rosto esquentar até as orelhas. Assenti com a cabeça, muda. Dessa vez ele foi com mais força. A língua dele entrou como um invasor na minha boca. Eu não sabia o que fazer com a minha. Era como se todo o meu rosto estivesse no lugar errado. Tentei imitá-lo, mas era estranho. Eu me sentia uma fraude. Como se estivesse usando um corpo que não era meu. As mãos dele apertaram minha cintura. Desceram um pouco. Uma delas passou pela minha barriga e parou ali, na cintura do uniforme. Um arrepio me percorreu a espinha, mas não foi daqueles bons. Foi de nervoso. Vergonha. Fiquei ali, imóvel, tentando parecer envolvida. Mas a verdade era que eu só queria que acabasse logo. “Finge que gosta. Finge que é normal. Finge que é como as outras.” Talvez tenha sido aí que percebi que a pior solidão é a que você sente mesmo com outra pessoa colada em você. Rafael se afastou, enfim. Lambi os lábios instintivamente, tentando entender se era isso que todo mundo dizia ser tão bom. — Tá vendo? Nem doeu. — ele disse, dando um sorriso torto e se ajeitando como se tivesse vencido uma aposta. Eu ia responder alguma coisa, talvez um “é” sem graça, quando escutei o som. Saltos apressados contra o chão. Um eco seco. E a voz. — Isabel?! Foi como um raio. Me virei num susto, o coração despencando. A professora Sandra estava parada ali, os olhos arregalados, o rosto contorcido entre indignação e prazer. Ela adorava pegar os outros fazendo merda. — Pra diretoria. Agora. — fala bruscamente em um sussurro áspero. Rafael bufou. Deu de ombros. Eu abaixei a cabeça e fui. Era sempre assim. Eu cometia o pecado, e o mundo fazia questão de me lembrar disso. Com testemunhas. A sala da diretora era fria. Silenciosa demais. As paredes bege, o crucifixo acima da porta, o cheiro de café morno e papel… Tudo contribuía para a sensação de julgamento iminente. Eu estava sentada ao lado de Rafael, com as pernas juntas, as mãos cruzadas no colo e o olhar grudado nos próprios sapatos. Ele estava relaxado. Encostado na cadeira como se estivesse esperando um ônibus. De vez em quando mexia no celular, ignorando completamente o que aquilo significava pra mim. E pra minha família. A diretora Sandra não disse muito. Só olhou para nós com aquele semblante de quem já viu isso acontecer mais de cinquenta vezes naquele semestre. — Vou chamar os responsáveis. Precisamos conversar todos juntos. — ela disse, tirando os óculos e esfregando a testa. — É uma escola confessional, senhores. Vocês sabem o que isso significa. Rafael soltou um suspiro entediado. Eu queria evaporar. Quis até argumentar e implorar para não chamar meus pais, mas sabia que não havia salvação para a minha causa. Trinta minutos depois, eles chegaram. Os pais de Rafael entraram primeiro. Uma mulher bem arrumada, maquiagem sutil, cabelo em coque baixo. Um homem de camisa social azul-clara, o blazer pendurado no antebraço. Eles pareciam mais constrangidos por estarem ali do que bravos com o filho.Eu senti as lágrimas querendo cair, mas engoli tudo. O que ele queria? Que eu me calasse para proteger Clara? Para quê? Para continuar a prisão em que eu estava presa, para aceitar o casamento que me destruía?Ele se aproximou ainda mais, a respiração pesada no meu rosto. — Eu sou seu pai e servo de Deus. Sei o que é melhor para você. A Igreja é uma só, e eu tenho meus contatos. Ninguém vai te tirar desse caminho. Meu corpo tremia, a angústia quase me sufocava. Eu queria fugir, mas não tinha para onde. Estava presa na fortaleza do fanatismo e da tirania.— Lembre-se: o silêncio é a sua proteção. A obediência é a sua salvação. — Ele disse, antes de virar e sair, fechando a porta com um estrondo que fez meu coração acelerar.Eu fiquei ali, no escuro, sentindo cada palavra dele se arrastar como um veneno na minha alma. E, no fundo, uma pergunta queimada no meu peito: será que Clara, tão ingênua, realmente não vai perceber o que está acontecendo? Será que eu conseguiria protegê-la da
Eu senti o nó na garganta subir. Me senti ridícula por não dizer nada. Eu queria xingar, gritar, comprar vinte sorvetes e jogar todos na cara dele. Mas não fiz nada. Porque eu sabia que, se eu começasse, ele ia virar tudo contra mim. Como sempre fazia. E a Clara… ela não merecia mais uma guerra hoje. Não depois daquele dia.O resto do caminho foi um silêncio longo e desconfortável, só interrompido por comentários soltos da minha mãe, tentando fingir uma normalidade que nunca existiu.— Foi tão bom sair em família, né? — ela disse, mexendo no cabelo pelo espelho retrovisor, sem olhar pra ninguém.Ninguém respondeu.Eu encostei a cabeça no vidro da janela, observando os prédios passarem, pensando no Lucas. Pensando naquela garota. Pensando naquele beijo estranho. Pensando em como tudo tinha começado a ruir, mesmo que por fora parecesse tudo no lugar.Lucas tinha dado uma desculpa. Tinha dito que era uma colega de trabalho, que eu mesma já conhecia de nome. Eu revirei minha cabeça t
No carro, fui calada. A Clara falava com a mãe sobre as lojas que queria ver, a mãe respondia com aquela voz polida de sempre. Meu pai, no volante, narrava cada barbeiragem dos outros como se estivesse numa corrida da Fórmula 1.— Olha esse aí. Se fosse mulher, ainda entendia — ele soltou, rindo da própria piada.Olhei pela janela e Fingi que não ouvi.**O restaurante era desses de comida por peso, todo limpinho, com música ambiente que parecia trilha sonora de funeral moderno. Sentamos perto da janela. Meu pai começou a servir o prato dele como se fosse uma competição.— Carne, arroz, batata, mais carne… — ele falava enquanto empilhava as opções.Minha mãe escolheu uma salada tímida com peixe.Clara analisava a bandeja como se cada grama pudesse desencadear uma guerra.— Pega mais um pouquinho de arroz, filha — minha mãe sugeriu, suave.— Tá bom assim — Clara respondeu, quase num sussurro.— Melhor não exagerar mesmo — o pai interrompeu, pegando um palmito grande. — Ela já t
Girei a chave com cuidado, o mais devagar possível, como se isso fosse atrasar o inevitável. O clique da porta soou alto demais, me traindo. Entrei na ponta dos pés, como se isso fosse diminuir a culpa. Já passava da meia-noite. Eu sabia. Naquela casa, horário era uma sentença, e liberdade, um pecado.Prendi a respiração, esperando ouvir o estouro da voz do meu pai vindo da sala, mas tudo estava quieto. A casa mergulhada em penumbra, com só a luz da cozinha acesa. O rádio velho deixava escapar uma música gospel arrastada, quase triste. Quando cheguei na porta da cozinha, vi minha mãe sentada à mesa, com uma caneca entre as mãos.Ela levantou os olhos devagar. Como se já soubesse que era eu. Mas quisesse ter certeza.— Onde você estava? — a voz dela saiu baixa, mas firme. Um tipo de dureza que ela só usava comigo.Fiquei parada na porta, como se tivesse doze anos de novo. Tirei os sapatos devagar, tentando parecer menos errada.— Estava com o Lucas — respondi.Vi o rosto dela mud
Cada movimento era urgente e, ao mesmo tempo, reverente. Era sexo, sim. Mas era também uma oração silenciosa, uma tentativa de redenção.Senti os lábios dele viajarem pelo meu pescoço, pelos meus seios, pelo meu ventre, e suspirei como se respirasse pela primeira vez. Os gemidos que escaparam de mim vinham carregados de dor e de alívio. Como se cada estocada dele empurrasse um pouco da minha tristeza pra fora.Ele se movia dentro de mim com uma lentidão que fazia o tempo parecer suspenso. Me olhava nos olhos, como se quisesse garantir que eu ainda estava ali. E eu estava. Pela primeira vez em dias, eu estava inteira.Gemi o nome dele, baixinho, quando gozei, sentindo o corpo se desfazer num calor que lavava minha culpa. Ele me segurou firme enquanto chegava junto, e ficamos ali, colados, suados, ofegantes, despidos de tudo.**Mais tarde, estávamos deitados, os dois nus, os lençóis amassados ao nosso redor. O quarto mergulhado naquela meia-luz cúmplice, que parecia respeitar o que
— Não me interessa o século. Enquanto você morar debaixo do meu teto, com o meu nome, você vai seguir minhas regras. E se não tá satisfeita, se acha que é melhor do que isso, se acha que o que eu dou não basta… então tá bom. Eu vou arrumar um pretendente pra você. Um homem de Deus. Sério. Responsável. E ele vai saber como cuidar de uma mulher insubordinada como você.Senti as lágrimas ameaçarem cair, mas segurei. Eu não queria chorar ali. Não na frente dele. Não de novo. Mas foi inútil. Uma lágrima escapou, escorreu pelo rosto. Tentei limpar rápido, mas ele viu.— Tá chorando por quê agora?— Porque o senhor não me ouve. Porque o senhor só me vê como uma vergonha. Porque eu tô tentando encontrar um caminho e o senhor só coloca mais muros, mais pedras, mais grades.Ele se aproximou ainda mais. O rosto a poucos centímetros do meu.— Você é uma ingrata. Sempre foi. Tudo que eu fiz, tudo que eu construí, toda a proteção que eu dei pra essa casa, pra essa família. E você retribui se
Último capítulo