Experimento

— Ah, legal. Parabéns pra ela. A Clara adorou a decoração — comentei, num tom leve, ainda meio surpresa com ele ter vindo falar comigo.

— Minha mãe caprichou. Ela gosta de festa. Ela está grávida de novo, acredita?

— Sério?

— Uhum. Quarto filho. Ela diz que é benção. Meu pai acha que é loucura.

— E você?

Ele riu.

— Eu tô só tentando sobreviver à gritaria em casa. Minha mãe ainda é bem firme na igreja. Já meu pai… não muito. Tá naquela de “tô pensando em sair”. Isso tem dado umas brigas, mas… — Ele deu de ombros. Não parecia amargurado, só cansado. Achei ele… sincero. Gente boa. Diferente dos meninos da escola que só sabiam rir alto e fingir que eram maduros.

— Complicado, né?

— É. A vida nem sempre é como a gente aprende no culto.

Antes que eu pudesse responder, senti fomos interrompidos.

— E aí, Bel.

Me virei devagar. Ele tava ali. Rafael. Camisa preta, olhos escuros, aquele sorriso meio de lado.

Meu nome na voz dele soou mais grave do que o normal. Como se tivesse um peso escondido ali, alguma coisa que ele não dizia em voz alta. Ele tava encostado na parede, ali perto da parte esquecida da piscina, braços cruzados, camisa escura colada no corpo. O sorriso não veio com a boca só com os olhos, e mesmo assim, era preguiçoso, quase debochado.

Lucas olhou pra ele, depois pra mim, depois de volta pra ele. E levantou a mão num cumprimento rápido.

— E aí, mano — disse, num tom contido.

— Tranquilo? — Rafael respondeu, direto, com aquela voz baixa que nunca deixava claro se ele tava sendo simpático ou só disfarçando alguma outra intenção.

— Bel, tá com sede? — Lucas virou pra mim, meio de lado, sem tirar os olhos completamente do Rafael.

— Tô — respondi, sorrindo. A presença do Rafael deixava o ar meio espesso. Eu só não sabia por quê.

— Vou pegar um refrigerante pra você. — E então, como quem segue um protocolo: — Quer um também? — perguntou, sem olhar diretamente pro Rafael.

— Tô de boa — ele respondeu, seco, já olhando pra mim de novo.

Lucas hesitou. Foi um segundo. E depois ele me encarou, como se tivesse certeza de que devia dizer alguma coisa. Mas não disse.

— Já volto — falou por fim, quase murmurando, antes de se virar e andar devagar na direção da casa.

O som dos passos dele se afastando foi ficando menor, mas o silêncio que sobrou não. Eu ainda tava ali, perto da piscina parada, a luz batendo na água e refletindo uns desenhos estranhos no chão de pedra. Rafael não disse nada de imediato. Mas também não desviou os olhos de mim.

Quando passou por mim, deu um leve tapinha no meu ombro e disse baixo:

— Você falou que tava de castigo. Ate pensei que não viria. — Ele senta ao meu lado.

— E dei um jeito, né?

Ele riu de lado, como se já soubesse a resposta. Nem esperou resposta.

— Gostei do jeito — ele falou.

— Que jeito?

— De convencer sua irmã a te tirar de casa. Mesmo de castigo.

— Eu precisava sair. Tava ficando louca. E a Clara tem um poder de persuasão que nem sabe.

— Hum. E tem hora pra voltar?

— Óbvio — revirei os olhos, tentando parecer indiferente —. Sete.

Ele soltou um riso curto, quase irônico.

— Sete? Você tem dezessete anos e ainda tem que voltar às sete?

Fiquei vermelha na hora. O jeito que ele falou… não foi ofensivo, mas me deu uma sensação ruim. Como se eu fosse menor do que realmente era. Como se fosse boba. Criança.

— É o que temos por hoje — respondi, tentando dar um ar de deboche.

Ele me olhou por um tempo. Um olhar longo. Aquele tipo de silêncio que parece pesar no ar entre duas pessoas.

— Quer dar uma volta? — Arqueei uma sobrancelha. — Uma volta?

— É. Sai um pouco daqui. Você não ia gostar que as pessoas começassem a comentar sobre nós dois estarmos aqui, sozinhos.

Na hora, me dei conta: estávamos realmente sozinhos. O quintal lateral era como uma faixa cega da casa, os adultos estavam todos nos fundos, no bolo, nas orações, nas conversas sobre louvor e célula. Do nosso lado, só umas espreguiçadeiras, a sombra das árvores e o som abafado da música gospel com batida de pop vindo do outro lado.

— Eu não posso ir longe. — Aviso, cheia de tensão.

— Eu sou vizinho — ele apontou com o queixo. — Literalmente do outro lado do muro.

Segui o olhar dele. Do outro lado da cerca, dava pra ver a parte superior de uma casa com telhado claro e uma varanda ampla.

— Aquela é sua casa? — Pergunto erguendo os olhos.

— Uhum.— Ele dá um meio sorriso.

Fiquei em silêncio. Olhei de novo pro outro lado da casa. Eu queria sair dali. Queria não estar naquela festa. Queria não pensar nos olhares da minha mãe, no sermão do meu pai, no julgamento inocente da Clara, na sensação de estar sempre errada, de novo.

— É só conversar — ele disse, como se lesse meus pensamentos. — Rapidinho. Eu te devolvo vivinha e completa daqui a pouquinho. Vamos?

Ele olhou o relógio.

— Uma e meia. Você ainda tem cinco horas e meia pra fingir que tá no caminho certo.

Dei uma risada baixa, nervosa. Eu não era burra. Sabia que não era só “conversar”. Mas alguma coisa nele… o jeito como falava, como me olhava, como não me tratava como criança… fazia parecer que eu estava decidindo, e não sendo levada.

— Tá. Vamos. — Engoli seco me levantando. Nós fomos, atravessamos o quintal. E pulei o degrau baixo da calçada, e saí com ele pela lateral da casa, os dois sumindo da visão da festa, enquanto do outro lado ainda ecoava o refrão:

“Deus me escolheu, mesmo eu sem merecer…”

E ali, naquele momento, eu sabia que a escolha não era Dele. Era minha.

**

A porta rangeu levemente quando ele a abriu. Ainda sem entrar, mas parada na porta eu reparei a sua sala.

O interior da casa era espaçoso, com acabamento bem cuidado. A luz do sol atravessava as cortinas de linho cru, caindo sobre um piso de porcelanato claro que refletia suavemente o brilho. O ambiente tinha cheiro de casa limpa, com um toque de lavanda no ar. O ventilador de teto girava com elegância, silencioso, como quem já fazia parte da decoração.

A sala era ampla, com um sofá grande de linho cinza, almofadas organizadas milimetricamente e uma mesa de centro de vidro apoiando um vaso moderno com folhagens artificiais. A televisão, enorme, estava embutida em um painel de madeira clara, cercada por nichos com livros bem escolhidos e porta-retratos em molduras discretas. No canto, uma luminária de pé trazia um ar mais sofisticado ao ambiente.

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