Caminhei até a porta com o coração disparado, não sabia o que me assustava mais: a urgência na voz do Lucas ou a tensão invisível que deixei no ar com Rafael.
Fui até a porta. Meus pés pareciam flutuar, como se eu estivesse andando dentro de um sonho estranho. Quando abri, dei de cara com o Lucas, segurando uma garrafa de refrigerante com uma mão, e com outra segurando copos, e com aquela expressão desconfiada que ele sabia disfarçar mal. — Eu resolvi levar refrigerante pra você… — ele disse, olhando por cima do meu ombro. — Mas não achei ninguém lá fora. Nem você, nem o Rafael. Tentei sorrir. Juro que tentei. Mas sentia que meu rosto ainda carregava o rubor de tudo que tinha acontecido. — A gente só veio pegar um negócio aqui — falei baixo, tentando parecer casual. — Coisa rápida. Lucas me encarou por alguns segundos. Depois olhou lá pra dentro. Rafael ainda estava na mesma posição, mas vestido, como se nada tivesse acontecido. Mas eu sabia. E Lucas também sabia. Ou, pelo menos, suspeitava. — Tá tudo bem? — ele perguntou, com a voz mais baixa agora. — Tá, claro. Eu já vou voltar — respondi rápido demais. Ele ficou mais um instante parado. Então, esticou o refrigerante pra mim. — Quer? — perguntou. — Ou prefere voltar logo pra festa? Peguei a garrafa, meio sem pensar. Meus dedos ainda tremiam, mas tentei disfarçar. Quando olhei por cima do ombro, vi Rafael agora sentando no sofá, o celular agora em mãos. Dedo deslizando na tela. Como se nada tivesse acontecido. Como se minutos atrás eu não estivesse ajoelhada na frente dele. O meu peito apertou. Uma parte de mim queria ficar. Queria entender aquele olhar de antes, o silêncio carregado, o que ele faria a seguir. Mas a outra parte… a outra parte sabia que Lucas estava ali por um motivo. — Vamos — ele disse, com a voz mais firme dessa vez. — Sua irmã tá lá na festa sozinha. Tava perguntando por você. A menção à Clara me puxou de volta como um laço apertado ao redor do pescoço. Suspirei, assentindo sem dizer nada, e fui atrás dele. Quando passei pela porta, senti o ar pesar. Lucas fechou atrás de nós com um estalo seco. Caminhamos alguns passos em silêncio, até que ele soltou: — O Rafael não vai voltar? Engoli seco. Por um segundo, considerei voltar, olhar pra trás. Mas não fiz. Só dei um meio ombro, um suspiro que queria dizer “sei lá”, e continuei andando. Era isso. Tensão interrompida. Desejo suspenso. E agora, só o silêncio entre mim e o Lucas, que sabia muito bem o que tinha interrompido. E talvez, só talvez… eu tivesse mesmo atravessado uma linha da qual não dava mais pra voltar. ** Eu sabia que alguma coisa estava errada desde a hora em que entrei na escola. Tinha algo diferente no ar. No jeito como as pessoas me olhavam. Ou melhor, no jeito como desviavam o olhar quando eu cruzava o corredor. Como se não quisessem ser flagradas olhando. E depois vinha a risadinha abafada. O olhar cúmplice entre duas meninas. Aquele cochicho rápido demais pra ser ouvido, mas lento o bastante pra ser notado. Passei a primeira aula tentando convencer a mim mesma de que era coisa da minha cabeça. Talvez fosse. Talvez fosse só… culpa. Ou nervosismo. Mas, na segunda aula, comecei a ter certeza. Alguma coisa tinha mudado. Quando o sinal do intervalo tocou, eu saí da sala direto pro banheiro. Precisava de um minuto sozinha. O pátio parecia um campo minado. O banheiro estava vazio, graças a Deus. Entrei no último box, fechei a porta e me sentei. O som do xixi preenchendo o silêncio me acalmou um pouco. Tentei não pensar muito, mas minha cabeça foi direto para a tarde de sábado. Para a sala dele. Para o jeito como ele me olhou. Como se eu fosse desejável, poderosa até. Aquilo ainda mexia comigo. Me deixou quente, mesmo agora, dias depois. Por alguns segundos, me senti viva. Diferente. E talvez um pouco dona de mim. Só que a sensação foi embora no segundo seguinte, quando a porta do banheiro se abriu e vozes entraram junto com o som dos saltos no piso frio. — …e aí ela simplesmente fez! — disse uma das meninas, rindo. — Eu não acreditei quando me contaram. Ela? Com aquela cara de sonsa? — Pois é. Nem bonita ela é. Mas tava lá, ajoelhada… — Ai, que vergonha, sério. O pior é que agora ela se acha. — Todo mundo sabe que um cara que nem o Rafael nunca olharia para ela. Ela não é nada mais que frigida. — Elas riem alto. — Buceta pecadora. — Elas riem tão alto que ficam sem ar. Elas vão jogando uma ofensa atrás da outra. Meus olhos se arregalaram. Era óbvio que era de mim que estavam falando. — Imagina o pai dela descobrindo? Aquele fanático. Ela finge ser toda certinha, mas… — Aposto que ela fez achando que ele ia namorar ela. As risadas preencheram o banheiro. Agudas, cruéis, afiadas. Eu congelei. Meu corpo todo tremendo, enquanto eu mordia o lábio para não dar um soluço de pura tristeza. Fiquei ali sentada, sem me mexer, como se o silêncio me tornasse invisível. Como se, se eu não respirasse, elas fossem embora mais rápido. Meu coração batia tão alto que eu jurava que podia ser ouvido do lado de fora do box. Quando finalmente saíram, a porta bateu com um estrondo seco, e o silêncio voltou como um tapa no rosto. Foi aí que eu chorei. Com as minhas mãos cobrindo o rosto, como se eu pudesse me esconder de mim mesma. Como se pudesse fazer tudo desaparecer se apertasse forte o suficiente. O choro veio quente, trêmulo. Eu soluçava feio, descontrolado, com soluços que arranham a garganta e doíam no peito. Esfreguei o rosto com força, tentando apagar as lágrimas, mas elas só vinham mais rápido, mais desesperadas. — Por quê…? — minha voz saiu baixa, falhada, quase inaudível. — Deus, por quê? Por que isso tá acontecendo comigo? A pergunta se perdeu no ar abafado, misturada aos sons feios dos meus soluços. Funguei alto, soluçando de novo, tremendo dos pés à cabeça. Sentia o rosto quente, a cabeça latejando. Não era só vergonha. Era culpa. Era raiva. De mim. De tudo. Delas. Dele. De um mundo inteiro que parecia rir da minha ingenuidade e confusão. Eu só queria que fosse um pesadelo idiota. Um daqueles que a gente acorda suando, mas aliviada por não ser real. Mas aquilo era real. E me doía como nunca antes. Lavei o rosto. Forcei o corpo a sair do banheiro. Andei rápido pelos corredores, tentando não ser vista, tentando não ver. Mas, claro, que alguém me veria. Lucas estava estava vindo na direção contrária e parou quando me viu. O rosto dele se fechou de leve. — Você tava chorando? — Ele parecia confuso. Balancei a cabeça depressa, passando a manga da blusa no rosto. — Não. Tô bem. — olhei para qualquer lado tentando evitar seus olhos. — Tá com a cara de quem acabou de sair de um furacão.