A mãe olhou pra ele e fez um gesto com os olhos, discreto, mas não houve bronca, nem palavras duras.
— Boa tarde — ela disse à diretora, sorrindo de leve. — Boa tarde. Por favor, sentem-se. —. A diretora pediu educada. A tensão no ar mudou quando meus pais entraram. Meu pai veio primeiro, a Bíblia quase sempre presente debaixo do braço, os passos pesados, firmes, como se pisasse em solo profano. Minha mãe vinha logo atrás, o olhar altivo, o cabelo preso em um coque elegante, o perfume caro impregnando o ar. Na frente da diretora, eles eram pura cordialidade. — Que situação desagradável, diretora Sandra. Agradecemos por nos chamar. — disse meu pai, com a voz controlada. Um sorriso forçado no rosto. — Não se preocupe, isso não vai se repetir. — Com certeza, não. — minha mãe completou, entrelaçando os dedos no colo. — Vamos conversar com ela em casa, com muita firmeza. Sandra assentiu, satisfeita com o tom educado. Continuou explicando que a escola não tinha intenção de punições severas, que entendia os “impulsos da adolescência”, mas que, por se tratar de um colégio cristão, não podia ignorar comportamentos impróprios. Meu rosto queimava. O tempo inteiro, Rafael parecia alheio. Mas em um momento, enquanto a diretora falava, senti o olhar dele em mim. Virei de leve a cabeça. Ele me observava com um olhar que eu não soube decifrar na hora. Não era exatamente arrependimento. Mas havia algo… talvez desconforto? Pena? Ele sabia. Sabia que os pais dele iam sair dali e provavelmente esquecer o assunto. E sabia que os meus iam transformar aquilo num martírio. — Está tudo bem, Isabel? — a diretora perguntou, puxando minha atenção. Provavelmente eu estava com uma fisionomia de puro horror. Assenti depressa. — Sim, senhora. Me desculpe. — Muito bem. Podem ir. Apenas… tenham mais cuidado. A escola espera um comportamento condizente com os valores que ensinamos aqui. Todos assentiram. E nos levantamos para sair. A caminho do carro, senti o gelo começar a escorrer pela espinha. Meu pai andava em silêncio, e isso era pior do que qualquer grito. Minha mãe também. Nenhum deles falou uma palavra até que entramos no carro. Porta foi fechada. O som abafado. E então, começou. — O que é isso, Isabel? — meu pai explodiu. A voz firme, mas baixa. Ele nunca gritava — ele esmagava com palavras. — É isso que você anda fazendo na escola? Envergonhando a nossa família? Minha garganta travou. Eu só conseguia olhar pra frente, os olhos ardendo. — Beijando um moleque, como uma qualquer? — meu pai cuspiu com nojo. Os dedos apertando o volante com força. — Isso mesmo, Isabel? Se entregando pra esse tipo de rapaz, em público? — Não foi… em público — murmurei, como se isso amenizasse alguma coisa. Meu pai bufou. — Não interessa. O que interessa é o que você se tornou. Uma menina vulgar, desrespeitosa, que mente. Porque você mentiu. Disse que viria direto da aula de literatura. A vergonha era como um ferro quente. Me queimava por dentro. Eu não sabia como responder, porque não havia resposta certa. Qualquer palavra viraria pecado. A minha vontade era de desaparecer. — Você sabe quantas meninas engravidam assim? — minha mãe cuspiu as palavras como se estivesse cuspindo veneno. — Começa com um beijo e termina com você manchando o nome da nossa família! Meu pai não disse mais nada, em total concordância com ela. Apenas pegou o terço que carregava no bolso do paletó e começou a passar os dedos pelas contas, murmurando algo que só ele e Deus entendiam. “Por minha causa”, pensei. “Estou fazendo meu pai rezar como se quisesse me exorcizar.” A dor vinha junto com o nojo de mim mesma. O carro seguiu em silêncio até em casa. E quando entramos, o sermão virou castigo. — A partir de hoje, sem celular. Sem computador. Sem sair com as meninas da escola. E nada de grupo de jovens. Você vai direto pra casa, pro seu quarto, e só sai pra comer, estudar ou acompanhar a Clara. Está entendido? — meu pai disparou, firme. Assenti. Era o que me restava. No fundo, uma parte de mim queria gritar que tudo aquilo era só um beijo. Que eu só queria me sentir como as outras garotas. Mas isso não importava. Na casa dos Barreto, o que importa é a aparência. O controle. A “pureza”. Naquela noite, chorei até dormir. Mas sem som. Lágrimas silenciosas, sufocadas no travesseiro. As únicas que podiam existir naquela casa. Enquanto eu me perguntava o porque eu nasci com defeito. ** Eu tentava andar rápido pelos corredores da escola, mas o peso dos olhares era como um furacão me arrastando pra baixo. A cada cochicho, a cada risadinha abafada que eu ouvia, sentia a vergonha se espalhando pela pele, uma sensação sufocante que grudava no meu peito. Todo mundo já sabia. Até as meninas mais quietas do colégio, elas não precisavam dizer nada, o olhar delas já dizia tudo. “Isabel, a menina que beijou o Rafael…” “Coitada, deve estar se sentindo uma aberração.” O pior, era que eu me sentia exatamente assim: uma aberração. Aquela palavra repetia na minha cabeça feito um castigo sem fim. Eu tinha dezessete anos e, até aquele beijo, nunca tinha tido coragem de me abrir, de tentar ser igual às outras garotas. Agora, ter ido para a secretaria e ter sido castigada pelos meus pais era só um reflexo da humilhação que sentia por dentro.