Meu estômago revirou. Eu sabia que ela ia perguntar. Não era burra. Só não sabia até quando eu conseguiria manter o disfarce.
— Não é nada — murmurei, desviando o olhar, os dedos apertando mais forte o guidão. — Você podia ter só deixado pra lá. Mas não. Ficou me pedindo. Disse até que eu devia insistir com o pai. Que era importante. — Ela me olhou de canto. — Você não contou nada pra ele, né? — Contar o quê? Ela arqueou uma sobrancelha. — Que o Rafael vai estar lá. Meu coração falhou uma batida. — Claro que não — respondi rápido demais. — E nem sei se ele vai. Clara soltou um suspiro cético, mas não insistiu. Graças a Deus. — Olha, eu só não quero me encrencar — disse ela, após alguns segundos. — Você sabe como o pai tá. Qualquer coisa vira pecado agora. — Eu sei — respondi, aliviada por ela mudar de assunto. — Então vamos só… ir rapidinho. Comer um pedaço de bolo, cantar parabéns, e voltar. — Às sete — completei. — Nem um minuto depois — ela repetiu, com um sorriso sem graça. Ficamos em silêncio por uns instantes, pedalando. O barulho dos pneus na rua, o calor, o cheiro de roupa lavada vindo de alguma casa próxima. E de repente, como se estivesse tentando aliviar o clima: — Lembra das nossas festas de aniversário? Quando a gente era pequena? — Como esquecer? A gente só podia chamar três pessoas. E uma sempre era a filha da irmã da missionária, que nem falava com a gente. — E a gente cantava “Parabéns pra Jesus” em vez de cantar pra nós — Clara revirou os olhos. — E ele ainda dizia que nosso maior presente era ter nascido com a salvação. — “A salvação é mais doce que qualquer brigadeiro” — completei, imitando a voz do nosso pai. Clara gargalhou, e eu também. Pela primeira vez em dias, me permiti rir de verdade. Mesmo com o peso da mentira queimando na minha língua. Mesmo sabendo que, se meus pais soubessem a verdade — que o Rafael estaria naquela festa — eu provavelmente nem voltaria viva pra casa. Pedalamos por mais cinco minutos, a bicicleta ainda rangia quando a encostamos no muro. Eu tava com a blusa colada no corpo de tanto suor, e a Clara com aquele ar contido de quem aceita tudo com dignidade. Clara ajeitou a alça da bolsa no ombro e respirou fundo. — Isabel… tenta não chamar atenção. Eu ouvi a briga. O pai tá muito nervoso com você. Revirei os olhos. — Clara, é só um beijo. Sério. Você tá falando como se eu tivesse sido pega cheirando cocaína no banheiro da escola. Ela me olhou horrorizada. — Eu sei, mas… você sabe como nossos pais são. — Justamente por isso que a gente precisava sair. Vai me dizer que você prefere ficar em casa, ouvindo sermão? Ela não respondeu, só bufou com um sorrisinho de canto. Sabia que eu tinha razão. Atravessamos o portão devagar. A casa da Gabi era típica de um bairro de classe média: sobrado bem cuidado, com muro branco, portão automático e uma varanda decorada com samambaias e uma cadeira de ferro pintada de dourado. A fachada estava recém-pintada, num tom de bege claro, e as janelas de vidro fumê davam um ar de organização e rotina. Mas a família dela se superou na decoração: balões rosa e lilás amarrados nos pilares da varanda, uma faixa com glitter escrito “Feliz Aniversário, Gabi” presa entre duas árvores do jardim, e uma playlist tocando alto; parecia pop adolescente, mas quando prestava atenção na letra, era tudo sobre Jesus, cura interior e promessas de dias melhores. Clara olhou em volta, os olhos escaneando o quintal lotado. — Então não foi por um carinha que você fez tanta questão de vir? — Não — Revirei meus olhos fazendo a maior cara de inocente. — Vim pela Festa, bolo, sair de casa. Essas coisas. Ela me lançou aquele olhar desconfiado, mas não insistiu. Foi aí que Gabi apareceu, com um vestido rosa cheio de babado e brilho nos olhos. — Oi! Você que é a Clara, né? Clara ajeitou o cabelo castanho selvagem e abriu um sorriso educado. — Sou sim. Parabéns, Gabi. A festa tá linda. — Ai, obrigada! Eu nem sabia que você ia vir. Fiquei muito feliz! Eu adoro seu cabelo! — Ah… obrigada — disse a Clara, sem saber o que fazer com o elogio. Eu me segurei pra não rir. A Clara me lançou aquele olhar de “eu vou te matar depois” e sussurrou, com a voz baixa: — Você me paga. — ela revira os olhos discretamente. — Relaxa, você tá sendo idolatrada. Vai lá, vê teus amigos. Me deixa um pouco. — incentivo-a. — Certeza que não vai aprontar? — Ela me dá um sorriso suave. — Eu? Nunca. — pisco para ela, mas tenho certeza que isso não deixou ela nada nada tranquila. Ela seguiu em direção ao grupo de meninas que pareciam sair direto de um grupo de discipulado, enquanto eu comecei a andar sozinha pela casa. Entrei, passei pela sala onde as tias fofocavam, peguei um copo de guaraná gelado na cozinha e escapei pro quintal lateral, Um pouco mais afastada da bagunça, encontrei uma parte do quintal onde ninguém parecia ter ido ainda. Era perto da piscina, uma daquelas retangulares, de azulejo azul claro, com água parada e folhas boiando na superfície. As espreguiçadeiras estavam empilhadas num canto, e uma toalha velha esquecida no chão. Claramente ninguém estava usando aquela parte da casa. Me sentei ali, perto da borda, com os pés ainda nos chinelos, olhando o reflexo tremido das nuvens na água. O silêncio me deu um respiro. Pela primeira vez naquela tarde, consegui respirar melhor. Foi quando ouvi passos se aproximando. — Oi. Você é a Isabel, né? Me virei e vi um garoto me olhando com um sorriso tranquilo. Alto, cabelo castanho meio bagunçado, camiseta simples, aquele jeito de quem não tem pressa pra falar. — Sou, sim. Você é… — Lucas. Irmão mais velho da Gabi.