Ela passa despercebida sob as luzes pálidas do dia, protegida por livros e silêncios cuidadosamente empilhados. À noite, porém, o mundo conhece apenas Afrodite, uma miragem de lábios entreabertos, voz que arrepia a pele e um rosto parcialmente velado que ninguém jamais tocou. Para seus milhares de assinantes, ela é fantasia e fuga, para Irina, é a única maneira de pagar as contas e de se proteger dos fantasmas que a perseguem. Evan Médici não acredita em limites. Aos trinta e poucos anos, comprou palácios, ruas, até bancos inteiros, mas jamais sentiu algo que o dinheiro não pudesse domar. Quando esbarra na transmissão de Afrodite, a lógica desaba. Ele quer mais que a imagem pixelada: quer possuir o enigma por trás da máscara. Quer comprar tempo, exclusividade, até o silêncio dela. Porém falha em todas as tentativas. Porque Irina não se vende. Ela negocia. E, nesse território, ela dita as regras. Quanto mais Evan tenta decifrar Afrodite, mais descobre que o verdadeiro tesouro não é a pele que ela esconde, mas as cicatrizes que ela guarda. Ao passo que o desejo vira obsessão, a obsessão vira necessidade, e a necessidade, uma perigosa rendição, Evan se vê travando a única guerra que jamais planejou: conquistar a confiança de alguém que aprendeu a sobreviver sozinha. Numa trama em que luxúria e poder se enroscam como serpentes, cada toque é risco, cada palavra, um fio de faca. Se Irina ceder, perderá a armadura que a mantém viva, se Evan insistir, talvez descubra que certas vitórias cobram o preço do próprio coração. E então surge a pergunta que nenhum deles ousa responder: o que acontece quando o homem que tem tudo se apaixona pela mulher que se recusa a ser comprada?
Leer más“O que começa como jogo… pode acabar em ruína.”
A cobertura parecia engolir o próprio ar naquela noite. Era um abismo de concreto, vidro, silêncio que carregava algo maior, mais frio.
Evan estava encostado à parede de vidro, com os olhos fixos na cidade que ardia em luzes lá embaixo tão viva, tão indiferente à ruína que se instalava dentro dele.
Segurava um copo de uísque com tanta força que parecia que quebraria a qualquer instante. Mas não bebia, porque não havia álcool no mundo capaz de apagar o gosto amargo que queimava sua garganta: o gosto cruel da verdade.
Atrás dele, Irina estava parada, parecia uma estátua de dor. Segurava o celular nas mãos, a tela ainda acesa com a mensagem que ela lera tantas vezes que parecia ter se fundido à sua pele.
Mas foi a voz dela que rasgou o ar. Fria, ferida, flamejante.
— Uma aposta, Evan?
Ele se virou devagar, como se o próprio corpo pesasse toneladas. O coração batia em espasmos selvagens, mas o rosto… era a máscara de sempre. Aquela que usava quando não suportava ser vulnerável. Aquela que agora… era inútil.
— Irina…
— Não me chama assim. — A voz dela cortou como vidro. Fina quase letal. — Então é verdade? Tudo isso… era só um jogo? Você se aproximou por causa de uma maldita aposta com seus amigos?
Ele avançou um passo, hesitante. Como quem se arrasta por um campo minado.
— Era só uma brincadeira no começo. Eu juro, eu não fazia ideia que você…
— Que eu era o quê?! — ela gritou, e a dor escorreu com as lágrimas que ela se recusava a enxugar. — Uma diversão noturna? Um experimento bizarro? Uma fantasia que vocês comentariam entre risadas no grupo de W******p?
Ele não respondeu. E naquele silêncio… tudo desabou.
Irina riu. Um riso quebrado, amargo, que jamais deveria sair da boca de alguém como ela.
— Você me comprou, Evan. Como quem arremata uma joia rara num leilão. Comprou a minha exclusividade. Me cercou de olhos invisíveis, me trancou num palco que só você podia ver. Fez de mim seu espetáculo particular. E eu… idiota… achei que era porque você… se importava.
— Eu me importo! — ele explodiu, avançando mais rápido, a dor rasgando seu peito como navalha. — Eu me apaixonei por você, Irina! Você acha que eu teria ido tão longe se tudo ainda fosse uma aposta estúpida?
— Acha que isso me consola?! — ela recuou, com os olhos faiscando como lâminas. — Você invadiu a minha vida. Me encurralou, controlou quem podia me ver, quem podia me tocar…me transformou num objeto, Evan! Um brinquedo de luxo! E agora vem me falar de amor?
— Eu nunca quis te machucar.
— Mas machucou. — ela sussurrou. E o mundo pareceu parar por um segundo. — E muito. Porque eu me apaixonei por você, pela mentira que você arquitetou com perfeição.
Ele estendeu a mão, como se pudesse tocá-la e, com isso, segurar o que estava escapando por entre os dedos.
— Me dá uma chance de explicar…
— Explicar o quê?! — ela cuspiu as palavras, sua dor transbordava de cada sílaba. — Que apostou minha alma numa roleta de luxo? Que transformou minha dignidade num desafio pessoal? Que seus amigos duvidaram de você e você resolveu usar a mim como resposta?
Evan engoliu em seco. Sua garganta ardia como se houvesse cacos lá dentro.
— Sim, no início foi tudo um jogo. Eu queria mostrar para todos que eu conseguiria te fazer minha, mas quando eu te vi, Irina. De verdade. Não como Afrodite, não como um nome numa tela. Eu senti algo que nunca tinha sentido antes…
Ela abaixou o olhar, suas mãos tremiam. A raiva começava a ceder espaço para um luto silencioso, o luto por um amor que nunca foi inteiro.
— Você destruiu a única parte minha que ainda era pura, Evan. Aquela que acreditava que podia ser amada… por quem eu sou. E não pela personagem que vocês consumiam por trás de um monitor.
Evan se aproximou e Irina deu um passo para trás e continuou:
— Eu queria ter me entregado a alguém que me amasse por completo. Não como desejo, tesão, mas amor…
— Eu… eu te amo. — ele disse, num sussurro desesperado, quase infantil.
Mas ela apenas balançou a cabeça, e seus olhos marejados refletiam toda sua dor.
— Você ama Afrodite. A mulher que projetou, a fantasia que comprou. Mas Irina? Irina foi só a consequência da sua aposta.
Ela caminhou até a porta com passos firmes, mesmo que o coração estivesse dilacerado. Quando sua mão alcançou a maçaneta, ele tentou de novo. A última tentativa de um homem prestes a afundar.
— Por favor… não vai embora assim. Me deixa tentar… consertar.
Ela virou levemente o rosto, os olhos vermelhos, a alma trincada, mas a expressão… forte como nunca fora.
— Você não pode consertar o que nasceu da mentira, Evan.
E então, ela se foi.
Deixando para trás um Evan estilhaçado, sozinho com o silêncio que agora ecoava como um lamento dentro da cobertura.
Do lado de fora, a cidade ainda brilhava. Indiferente.
Enquanto, dentro dele, o mundo inteiro se partia.
O camarim ainda cheirava a lavanda e luz quente, mas Irina não se sentia ali.O segundo encontro com o cliente novo e gentil, havia terminado há pouco. Seu corpo ainda carregava o suor da dança, a marca invisível de olhos que invadiam mais do que deveriam. Sentia-se observada mesmo sozinha, como se os espelhos da sala anterior a seguissem até ali.Ela havia acabado de vestir um robe novo, tentando se recompor diante da penteadeira, quando alguém bateu suavemente na porta.— Senhorita Irina? — chamou uma voz feminina do lado de fora.— Sim? — respondeu, sem se virar.— Entrega para a senhorita. Acabou de chegar pelo correio, com seu nome. Direto para cá.Irina franziu o cenho. Ela nunca recebia nada ali. O estúdio era discreto, seletivo. Ninguém além dos coordenadores conhecia seu nome verdadeiro, e todos os “clientes” sabiam que Afrodite era o limite do que poderiam ter.Ela se aproximou com cautela, como se a caixa pudesse explodir ao menor toque. A fita fora amarrada com perfeição.
Na penumbra suave do estúdio reservado, o silêncio reinava como um sussurro prestes a ser rompido por acordes. As paredes eram revestidas de tecidos escuros, que abafavam qualquer som externo, criando uma bolha íntima onde o tempo parecia desacelerar. As luzes quentes, posicionadas com precisão, lançavam sombras tênues sobre o palco de madeira polida, criando um cenário quase onírico, meio teatro antigo, meio sonho noturno.No centro do palco, Irina se preparava para mais uma apresentação, mas havia algo diferente naquela noite. Algo na atmosfera. No nome que piscava discretamente no canto da tela: O Corvo. O novo cliente, um homem gentil, educado, que não exigia, nem ordenava. Ele estava online e ela recebeu uma mensagem que a fez sorrir:“Dance como se ninguém estivesse te olhando.”E era exatamente isso que ela faria.Irina vestia uma peça que misturava sensualidade com elegância. Um body de renda preta com detalhes vinho, recortado nas laterais, com transparências sutis que insin
A cidade parecia sangrar, as luzes vermelhas sobre o asfalto úmido, cada farol refletia no para-brisa como se zombasse da fúria cega de Evan Médici. O motor do Porsche urrava, gritando por ele. As mãos dele, ainda trêmulas, agarravam o volante com força enquanto o carro cortava as ruas de Boston como uma lâmina quente, rápido, perigoso, movido não por destino, mas por fuga.Na mente dele, a cena se repetia em looping cruel: Irina de braços dados com outro homem. O sorriso dela, o modo como o corpo dela se inclinava levemente para o lado do sujeito, como se compartilhassem algo íntimo, exclusivo. Não havia beijo. Não havia toque escandaloso. Mas o silêncio daquela imagem gritava mais alto do que qualquer traição carnal.Evan socou o volante com ambas as mãos e os dentes estavam cerrados.— Idiota. Idiota! — rosnou para si mesmo. — Claro que ela escolheria outro homem. Um homem normal. Um que não demorasse a deixar claro o que sente por ela.Ele acelerou ainda mais, o ronco do carro eco
O motor do Porsche permanecia ligado, em marcha lenta, como um predador silencioso à espreita. O ronco grave ecoava baixo na rua estreita e arborizada do bairro nobre onde o edifício Rosewood se erguia imponente. Dentro do carro, Evan Médici encarava a fachada do prédio com a expressão tensa de quem já venceu guerras empresariais, mas agora se via derrotado por algo muito mais íntimo, o medo de perder alguém que nem sabia como manter.Os olhos dele, claros e geralmente inabaláveis, estavam agora densos, inquietos, turvos como vidro sujo de chuva. Não era comum hesitar. Mas ali estava ele, parado, imerso em um conflito entre orgulho e desejo, entre controle e rendição.O relógio no painel marcava 18h03. O céu carregava nuvens pesadas e o ar úmido parecia condensar tudo ao redor. Um trovão distante ribombou no céu como se a própria cidade o advertisse: “Ainda dá tempo. Ou nunca mais.”Evan passou as mãos pelos cabelos loiros, pressionando as têmporas com força. O gesto era quase desesp
O relógio digital marcava 10h47 da manhã quando Evan Médici, sentado na ponta da mesa de mogno, perdeu a paciência pela décima vez desde que a reunião começou. A sala de reuniões, cercada por janelas de vidro fumê, tinha uma vista privilegiada para o centro financeiro da cidade, mas nada naquele cenário de poder e controle era capaz de acalmar o turbilhão dentro dele.Vestia um terno cinza grafite impecável, gravata azul escura ajustada com precisão e expressão de poucos amigos. À sua frente, gráficos e planilhas eram apresentados em uma sucessão entediante de vozes monótonas. Ele não ouvia nada. As palavras se embaralhavam, virando um ruído de fundo irritante.A mente de Evan estava a quilômetros dali.O aviso do hacker havia chegado horas antes, como uma bomba silenciosa que implodiu dentro do seu peito: Irina se apresentaria novamente hoje e para o mesmo cliente que Evan tinha certeza se tratar de Andrews. Aquilo acendia todos os alertas de Evan. Principalmente o ciúme, aquele sent
O aguaceiro martelava o telhado como se quisesse atravessar a telha, compondo uma espécie de sinfonia irregular que me manteve numa fronteira nebulosa entre sonho e vigília. O mundo, lá fora, parecia dissolvido num lençol de névoa e asfalto escuro. Dentro do quarto, um espaço amplo, iluminado apenas pela luz leitosa que entrava pelas frestas da cortina, eu sentia o cheiro distante de madeira encerada e lençóis limpos.Ainda de olhos fechados, percebi um beliscão leve no calcanhar esquerdo. Outro. Mais outro. Eu conhecia aquela provocação. Deixei rolar por alguns momentos, fingindo dormir, até ouvir a risada alta, tilintante e inconfundível do meu filho.— Droga… — resmunguei, forçando as pálpebras a se abrirem ao mesmo tempo em que me virava de lado. — Joshua…Ele se agachou, tentando esconder-se atrás da beirada da cama. Mas o redemoinho dos cabelos ruivos dele, herança da mãe, denunciou o esconderijo antes mesmo que eu erguesse o tronco. Estava sozinho entre os lençóis.Num moviment
Último capítulo